Dizem que mudamos com o tempo e, em certa medida, há verdade nesta afirmação. Não passamos pelo tempo sem que ele opere a sua erosão em nós. Apaga coisas na nossa cabeça, semeia outras no nosso corpo, aclara por vezes o que estava obscuro, escurece o que era claro. Mesmo que ficássemos quietos ao pé de uma parede, os dois, a parede e nós, haveríamos de marcar e ficar marcados pela passagem do tempo.
Mas também é verdade que há coisas imunes ao tempo, e são tantas que podem constar de uma espécie de inventário do que não se perdeu, do que se salvou do tempo e até de nós mesmos no processo de passarmos pelas horas, dias, meses e anos.
Coisas que transportamos em nós, coisas perenes, quase eternas como o tempo que nos sobreviverá no seu trabalho de apagar e escrever.
Não falo da espécie de memória que fica gravada nas fotografias. Aliás, li há pouco tempo uma frase extraordinária de Maria Filomena Molder: "a fotografia apanha os seres a caminho da morte, em breve (isto é, mais tarde ou mais cedo) estarão gastos, arruinados, mortos, desaparecidos".
Não, não falo da falsa memória das fotografias, que inscrevem mais a nossa futura erosão do que a nossa eternidade impossível. Falo mesmo do que parece ser eterno em nós, até ao momento em que a nossa eternidade cessar de o ser.
Falo de um inventário pessoal de coisas não esquecidas.
Falo do medo do escuro que sobrevive à racionalidade de adultos; do encanto por desenhos e histórias ilustradas; da alegria de mergulhar no mar e de ver desenhos animados; da capacidade de acreditar dentro da incredulidade que vem das sucessivas desilusões, perdas e lágrimas; do encanto pela infância que nunca deixei de levar pela mão como amuleto contra a finitude; falo das casas que guardei e pelas quais entro sempre, como se as portas se mantivessem intactas e abrigassem ainda o que fomos dentro delas. Também acontece o mesmo com as cidades. Falo dos meus mortos ainda tão vivos na minha ternura por eles. Falo do imutável de ser ainda a miúda que fui, a correr pela escadaria da casa dos tios, a rir de nariz no ar debaixo de três laranjeiras que já não existem, mas que são, em mim, mais reais do que o cimento que as substituiu. Falo das manhãs de Natal e do calor dos meus irmãos juntos num sofá verde do qual ainda guardo a cor como se fosse vivo como nós catraios do meu sonho.
Este seria um inventário quase infinito se houvesse ainda tempo para o escrever e espaço para o guardar. Se este jornal não fosse tão finito como nós e não partilhasse da mesma eternidade efémera que nos constrói mortais e felizes, por sabermos que é assim mesmo que somos.
Creio que todos nós temos este inventário pessoal de coisas que sobrevivem a todas as mortalidades, até mesmo à nossa anunciada e invencível. É este inventário que nos dá a eternidade possível, a imortalidade que nos constrói como seres de fábula e sangue. Quase criaturas aladas, a virar os séculos que passam por nós e que continuarão a passar depois de termos passado.
A nossa eternidade é um inventário de coisas que não perdemos. E há tanta eternidade em tudo isto.