De manhã, vou a pé para o trabalho. Conheço o caminho de cor de tanto o percorrer desde tenra idade. Também conheço as casas e os seus moradores e é uma enorme satisfação cumprimentá-los e poder dar dois dedos de conversa. Hoje, porém, e porque vim acompanhada com Live to tell de Madonna, que cantarolei com entusiasmo, recuei literalmente no tempo e senti-me leve, tão leve como quando tinha 16 anos e o mundo se resumia aos balneários ou ao Camanel, lugares de todas as (im)possibilidades. E como o sol vaidoso e galã convidava a banhos, resolvi fazer um picnic debaixo do cais e arrastei a Luísa. O mar baboso, turquesa, recebeu-nos de braços abertos e obviamente que tivemos a praia só para nós. Indiscritível. Tal como ela disse, só faltou a uva caracol. Já estou a imaginar-nos a empanturrar de uvas lavadas no mar. Vais-me desculpar, Oh Eva, mas prefiro uvas a maçãs!
O fim de semana do Trail foi bastante animado e eu, sem esperar, andei montanha acima, arriba baixo, galgando veredas e penedos, guiada pela Vera que, de tão ligeira, nem pisa o chão. Cheguei ao fim completamente despencada. A meia subida do Pico Ana Ferreira, olhei em volta, lá do alto e lembrei-me de imediato de Torga quando escreveu “magoei os pés no chão onde nasci”. A diferença é que, por esta altura, já me doía tudo: pés, joanetes, joelhos, juntas e etc... só os olhos, deslumbrados com esta comunhão entre chão e céu, escapavam ao martírio. Os olhos e a alma, na verdade.
Março vai a meio e, por entre as decorações da Páscoa e o dia da Poesia, veio mais um temporal. Os mais aventureiros enfrentaram as ondas gigantes da travessa e mantiveram a tradição de passar a Páscoa nesta ilha encantada. Porém, S. Pedro não estava para falinhas mansas e até pediu reforços a um tal Nelson e a chuva, o vento e o frio persistentes afastaram as gentes da vila e até causou o cancelamento dos espectáculos. Apesar de tudo, a Alegoria da Páscoa atraiu residentes e forasteiros e fez jus às celebrações, e na verdade, sente-se mais movimentação na Vila Baleira. Afastados da praia, a grande maioria parte em busca de novos trilhos, aproveitando para descobrir uma das ofertas adicionais do Porto Santo: as caminhadas. Só vos digo uma coisa, e para não ficarem com os pés em mau estado, evitem as chinelas e/ou as alpercatas e tragam calçado adequado e já agora um corta-vento. Quem avisa vosso amigo é!
Porém, o maior drama é o corte das palmeiras, vítimas do escaravelho que não dá tréguas. Custa passar pelas ruas e encontrar apenas os troncos amputados e visivelmente doridos. E regresso ao poeta telúrico acreditando que ainda é possível sermos:
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia.