Um destes dias li um depoimento sobre o Sistema Nacional de Saúde que me fez pensar. Não sobre as virtudes e defeitos do sistema, mas sobre algo mais profundo. Sobre o humano que nos define e sobre a nossa capacidade de perdoar, de matar e de salvar. Movimentos profundamente íntimos antes de serem conceitos gerais na saúde, na lei e nas regras do mundo.
Dona Preciosa Santos, assim se chamava a senhora que falou, começou por dizer que não a preocupava o sistema. Realmente o sistema é algo de tão vasto que nos sobra por todos os lados, que nos ultrapassa na vida quotidiana, nos dias que contamos e nas horas que prendemos aos relógios.
Sobre o sistema, cada um apenas pode falar da parte que um dia lhe tocou no corpo. Naquela parte indistinta para um coletivo, mas que é a única que sentimos na pele e até mais a fundo.
Assim, Dona Preciosa não se preocupava com o sistema na acepção geral das coisas. Do sistema podia apenas falar da parte que lhe tocou. E o sistema, segundo ela, sempre a tinha tratado bem. Mas, (nestas coisas há sempre um mas) um dia quase que o sistema a matou. Facto relevante este, pensamos logo nós que estamos por fora da pele de Preciosa. Só que Preciosa sabe mais do que nós. Sabe que aquele sistema que um dia quase a matou, já a salvou tantas outras vezes.
Confesso que estas palavras me prenderam a atenção muito para além da brevidade da leitura. Quantas vezes podemos perdoar o quase nos terem matado? Quantas vezes nos podem salvar para que o ato de quase matar seja um pormenor, apesar do peso de uma quase morte? Uma quase morte presa por um desses acasos que tanto podem ir até ao fim, como ficarem na linha irrealizável de um gesto final.
Sabem os poetas que quase matar é um verbo conjugável, certo, possível. Como se a morte fosse um gesto que pode ficar suspenso. A quase morte. Se pensarmos nestas coisas durante o tempo suficiente para as pensarmos de verdade, talvez todos nós saibamos que são múltiplas as vezes em que quase morremos, mais ainda as vezes em que quase nos matam.
Sabemos também as vezes múltiplas em que podemos ser salvos. Em que a suspensão do verbo respirar aspira longamente e nos traz de volta a pele que tinha ficado adiada num não lugar de nós.
Preciosa olha o sistema com o corpo, única possibilidade de acertar um julgamento. O sistema é esse vasto nada até que nos toca a pele para quase matar uma vez ou salvar todas as outras. Eis uma síntese. E a síntese serve para os grandes sistemas que nos são exteriores e para os pequenos e privados sistemas que nos habitam.