É possível fazer correr para o protector regaço da figura de autoridade, e assim envolvê-la num inescapável abraço securitário, uma criança convencida de que, se não o fizer, será levada por um qualquer papão. Talvez não seja por acaso que, culturalmente, este papão se manifeste tanto na figura de um estranho com intenções suspeitas, como na de um agente de autoridade. No caso do déspota, o papão também pode ser o desconhecido externo (muitas vezes exagerado, algumas vezes inventado). Caso o resto falhe, o punho autoritário do próprio é mais uma opção.
Pode manter-se uma mente infantilizada desde cedo, através de uma educação criadora de confusão, retirando ao educando qualquer base sólida onde escorar o bom senso e a capacidade crítica, até mesmo fazendo substituir, como figura promotora do seu desenvolvimento, o progenitor pelo déspota. Também é possível infantilizar a mente adulta com choques de confusão e medo sucessivos, intercalados por ofertas de conforto, orientação e condescendência.
Entre resmas de leis justificadas, mesmo que nem sempre razoáveis, enfiam-se coisas estapafúrdias, não só a ver se passam, como a provocar uma certa dissonância cognitiva ao súbdito que, mesmo desconfiando de que algo está errado, prefere fingir compreender a bondade da coisa para não ser catalogado de estúpido, ou por ter medo. Pode mesmo chegar ao ponto em que, de facto, compreende e aceita a suprema utilidade e a estapafurdice ao mesmo tempo, sem registar a óbvia contradição.
Quando, por exemplo, vemos um representante da justiça ameaçar os progenitores com a retirada de um filho por "ataques ao poder do Estado" e por "porem em causa legislação aprovada […] como Lei de Bases do Sistema Educativo" (ver ponto 16º das alegações da Procuradoria do Juízo de Família e Menores de V. N. de Famalicão, entregue a 12/04/2022 na Comarca de Braga), estamos perante uma ameaça concreta; a tentativa de amedrontar estes cidadãos, e outros que alguma vez pensem em pôr em causa o Estado ou uma lei, seja esta injusta ou não. No caso em questão, em que os pais querem assumir, por si, a total responsabilidade da educação dos filhos em determinadas matérias subjectivas, a própria Constituição da República Portuguesa determina que "Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos" (Artº 36, al. 5), não o Estado. (A CRP também determina, já agora, na al. 2 do Artº 43, que "O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas." — não são apenas as ideológicas...)
Acredito que, chegado aqui, o leitor possa estar confuso quanto ao propósito e à ligação entre este último parágrafo e a primeira metade do texto. Repare, então, que o caso concreto que acabei de referir implica tanto a aplicação de uma dissonância crítica nos mais novos, como a ameaça a todos; estejam envolvidos, ou apenas atentos espectadores.
Como tão bem escreveu Martin Luther King, Jr, da prisão de Birmingham — tradução caseira —, "Temos a responsabilidade, não só legal, mas também moral de obedecer às leis justas. Por outro lado, temos a responsabilidade moral de desobedecer às leis injustas."