Flash! Abro a cortina num quarto de hotel em Sidney, onde tinha chegado durante a noite, e vejo a opera ao fundo. Após uma viagem noturna, em que todas as coisas que vi eram mais ou menos indistintas, esta visão matinal é a prova real e absoluta de que cheguei à Austrália.
– Uau! – Disse em voz alta.
E isto é quase tudo o que guardo na memória da minha estada em Sidney em 2001. Bom, também me lembro de levantar a mão num restaurante, algures perto do mar, para chamar o empregado e ele veio ter comigo e eu, usando o meu inglês de primeira, disse:
– The bild.
Ele fez cara de espanto:
– The what?
Então, eu desenhei no ar a escrita internacional para dizer ‘a conta’ e ele reagiu:
– Ah, the bill!
De repente, outro flash! Tenho quatro anos. Olho para as mãos e vejo o fio de cânhamo a correr entre os dedos e depois olho para o ar e vejo a joeira a sorrir para mim, metade vermelha, metade branca, e o rabo feito de tiras de pano a equilibrá-la por cima da igreja da Visitação. Estou feliz. Mas, se calhar, esta é uma memória falsa ou então é uma memória que reúne num único momento todas as vezes em que alteei joeiras no decurso da minha infância e adolescência.
Flash!
É assim a história do meu passado.
Ou seja, tal como quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento, também quanto mais mundo o indivíduo tem, maior é o seu esquecimento acerca dele. Da minha parte, confesso, já não recordo quase nada dos sítios por onde passei, incluindo Moçambique, onde vivi intensamente entre 2008 e 2013. Isto para não falar de pessoas, pois se as deixo de ver durante algum tempo, ou se perco o contacto com elas, num instante se transformam em vultos irreconhecíveis. Depois, vêm ter comigo e eu não sei com quem estou a falar. É estranho e confrangedor.
Não é que tenha muito mundo, mas lá esquecimento acerca dele tenho imenso. Pouco a pouco, tudo se esfuma e o que antes era uma corrente contínua de lembranças, passou a ser uma corrente intermitente de flashes. Pode ser sinal de demência precoce, pode sim senhor. Mas, acima de tudo, é uma marca indelével da condição humana – a brilhante capacidade de esquecer e com isso confundir.
Flash! Em Bandiagara, no País Dogon, um grupo de crianças felizes e esfarrapadas cerca-me quando estou a subir para o jipe. Do meio do grupo vejo erguer-se uma mão com um envelope de bordo vermelho e azul. O miúdo não diz nada, mas eu entendo que está a pedir-me que leve a carta e a deposite no correio. É uma carta para a Suíça. Hoje sei que fui ao Mali em 2007 apenas para prestar aquele serviço postal.
Flash! E vêm os mortos do meu coração quando estavam vivos, vêm flores, amores e horrores e pedras que atirei à ribeira, vem a boémia na juventude, vem uma bebedeira de caixão à cova, vem uma certa vez na praia, vêm os diferentes locais onde trabalhei, vêm as casas onde morei, vem a tropa, Mafra e a sombra do convento, vem uma cena de sexo, vêm pessoas que conheço apenas nos sonhos e pessoas que conheço apenas na realidade, vêm os animais da minha vida, vem um pôr-do-sol no Lago Niassa, outro no Cabo Girão, vem a imagem da solidão, vem tudo e mais alguma coisa e por fim vem a escrita, a melhor forma que conheço de travar o esquecimento.
Não sou dado a fotografias e vídeos para registar a minha passagem pelo mundo. Prefiro escrever e é desta forma que fixo memórias. A meu ver, a escrita é também a forma mais profunda de comunicação, pois as imagens e o movimento acerca do que se conta são sempre gerados a partir da imaginação de quem lê e nada é mais profundo e dinâmico do que a imaginação do ser humano. Por isso, a escrita faz com que a exposição de qualquer tema, por mais próximo que esteja da realidade ou da intimidade de quem escreve, depressa se transforme em representação, pura arte. Ou seja, tudo acaba sempre por parecer ficção, sobretudo o que se esquece. Já as fotografias e os filmes avivam a recordação, mas amolecem muito a imaginação.
Flash!