MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

11/07/2022 07:40

Vivemos agora nesta espécie de mundo que todos os dias tem ameaças escondidas. Vírus novos, novas guerras, novas extinções, más projeções de futuro e um planeta que, dizem, caminha para a extinção, esgotado pelos nossos atos e omissões.

E, às vezes, quase que somos levados a acreditar nesta espécie de fim de mundo com a qual nos ameaçam os dias e o futuro.

Ainda assim, lá no fundo, quando a racionalidade se permite as suas liberdades ao arrepio do medo, tendemos a relativizar, a lembrar que os medos sempre estiveram lá, que o fim do mundo é uma espécie de mantra que nos acompanha desde os tempos sem memória. Basicamente vivemos sempre esta pré-catástrofe que se insinua entre os dias mais ou menos felizes.

Não se trata aqui de negar a ciência, nem as evidências, nem o mal que infligimos ao planeta sem sabermos que riscamos e ferimos a própria pele.

Trata-se apenas de um pingo de relativismo, talvez inspirado nestes dias de calor, neste azul intenso, nesta neblina africana que envolve a paisagem pela manhã, fazendo desaparecer as linhas perfeitas do horizonte e as ilhas que se desenham ao fundo.

Sim, já vi este azul, já senti este calor, este colar da garganta como se o ar custasse a passar. Esta espécie de calor molhado na pele e esta languidez pela tarde fora, que adormece homens e bichos.

Já vi estas tardes em que tudo parece desacelerar sob o calor que cai pesado na respiração do dia. Este estender de braços ao sol e o mergulho na água que aquece sob a inclemência do sol.

Sim, já vi mortes suficientes e ouvi histórias aterradoras de fins de mundo. Tinha uma avó e um pai versados em catástrofes e pesadelos. Não havia medo que não soubessem contar em histórias para não dormir.

Acordados até ao osso, por esse medo do fim que, afinal, seria sempre pessoal e intransmissível. Triste, incompreensível e aterrador apenas para os outros, os que ficam, sobreviventes de incêndios sem fogo e naufrágios sem água.

Não sei se haverá um fim do mundo coletivo um destes dias. Se uma dessas datas que se atiram ao azar, um dia vai cair-nos em cheio no peito. No peito de todos, com um só gesto que nos mate coletivamente. Não sei que tipo de fim do mundo nos espera, ou se vamos acumulando ao longo do tempo muitos fins com os recomeços necessários que se impõem por cima dos nossos medos e dos nossos erros.

De qualquer forma, é sempre difícil aceitar a catástrofe quando um azul profundo se impõe assim, com esta felicidade de verão e este calor que nos cola de volta ao mundo, porque tudo nele nos obriga a sentir a intensidade de estarmos vivos. Esse milagre de estarmos vivos, essa absoluta maravilha de sobrevivermos aos fins do mundo que se anunciam e aos outros que estão por vir. Sempre com o mesmo azul.

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