"Ai Coração" venceu o Festival da Canção 2023. Música vibrante, letra alegre sobre um tema comum e sempre atual: o amor. Interpretação à altura; festivaleira, pois claro. As opiniões dividiram-se, de imediato, entre os que concordam com a votação e os que fariam outra escolha. O habitual! Nunca somos unânimes. O resultado na Eurovisão poderá aproximar-nos: se for fraca a pontuação, logo se erguerão as vozes do contra e as outras silenciar-se-ão. Por outro lado, se ficarmos bem classificados, então a simpatia nacional para com a canção crescerá e o desagrado será residual.
Ficamos, pois, na expetativa do julgamento final, embora saibamos que os resultados dependem de muitos fatores que não apenas a canção a concurso, o interprete ou o seu desempenho sobre o palco. Quantas canções fabulosas já enviámos ao festival sem que merecessem os votos dos outros países? Salvador Sobral foi a exceção a dar-nos o gosto da vitória internacional. E como apreciamos nós ser reconhecidos lá fora! Nada nos faz sentir tão grandes.
O português é pouco dado a valorizar os seus músicos, artistas plásticos, desportistas, escritores, atores, realizadores, etc., a menos que estes obtenham méritos além-fronteiras. Quando tal acontece, o reconhecido passa a ser divulgado nos meios de comunicação, tem direito a menções, medalhas e outras manifestações, ainda que, de modo geral, fugazes.
A autora-intérprete de "Ai Coração" é um exemplo de persistência no mundo da música, sem que déssemos por ela. Confesso que pertenço ao grupo dos que a desconheciam. Após a vitória, fui ouvir algumas das suas canções disponibilizadas online e gostei. No momento de receber o prémio, Mimicat dedicou-o aos que, como ela, lutam, ao longo de anos, sem que alguém repare neles.
Somos mesmo um país estanho. Temos gente capaz e criativa em várias áreas. Contudo, com exceção do futebol, que tem sempre espaço para muito falatório, tudo é silenciado com indiferença ou menosprezo. Somos um país onde, para impedir a exclusão da música portuguesa dos programas radiofónicos, é necessário estabelecer quotas que obriguem as rádios a incluir uma percentagem mínima dela — o que deixa alguns muito indignados.
Este mesmo desvalor se verifica para com os livros. Nas vezes em que tive oportunidade de visitar outros países, sempre gostei de deambular nas livrarias locais. Nas estantes, alguns escritores estrangeiros, mas, a grande maioria são obras dos nativos desse país. Em Portugal, pelo contrário, as prateleiras estão repletas de autores estrangeiros e, lá pelo meio, uma dúzia de nacionais.
A maioria dos nossos músicos, escritores, pintores, etc., vivem ignorados e duvidando se o são por serem medíocres ou se porque ninguém se dispôs ouvir, ler, ver o que produzem. Na dúvida, talvez se calem, desistam. Alguns são ressuscitados a título póstumo. Tenho assistido a reedição de músicas, promoção de exposições, espetáculos de teatro e reedição de livros de autores que morreram ignorados pelos seus coevos e que agora saem do anonimato e são apresentados como criadores de obra meritória.
Não defendo que vivamos numa atitude pacóvia de rejeição a tudo o que seja estrangeiro, mas acho importante que atentemos no que é nosso também, de preferência, sem ter de esperar que a poeira do tempo venha resgatar a obra do pó dos arquivos.
Valem-nos alguns eventos, como os festivais ou as feiras do livro, que abrem uma janela para podermos apreciar o valor da nossa prata da casa.