À medida que o tempo avança, são cada vez mais as ausências. As pessoas que faltam, alguns animais também. Todos esses ausentes que, de uma forma ou de outra, deixaram de estar, de fazer parte.
De todas as ausências, a mais dolorosa, definitiva e misteriosa é a ausência de uma vida. A morte como última fronteira de um irrecuperável.
Quando era miúda, ouvia a minha mãe dizer, muitas vezes, que só não havia remédio para a morte. Era então uma frase vazia, tão longe que parecia estar esse tempo das perdas profundas. Éramos ainda quase todos vivos, tirando os que pareciam ter sido mortos toda uma vida. Aqueles das fotografias que se reclamavam nossos num tempo que não foi o nosso. Esse tempo no qual ainda não existíamos, mas onde a nossa história tinha começado.
Mas era apenas uma questão de tempo até a morte ser também uma coisa que nos subtraía os vivos, os nossos, os que do nosso lado estavam e, um dia, deixam de estar.
Ao princípio é uma dor nebulosa, confusa. Somos ainda cheios de uma eternidade que tem alguma dificuldade em lidar com o fim, em compreendê-lo na sua plenitude.
Somos uma espécie de presente perpétuo, trazemos uma imortalidade de sermos uma pele nova e um coração ainda intacto à dor. Acreditamos ainda que ‘vão-se os anéis e ficam-se os dedos”, como também dizia a minha mãe. Até descobrirmos que as coisas imortais não sentem saudades de nós, nem daqueles que as usaram. Que as casas provavelmente não guardam memórias, que as roupas encontram outros corpos, os sapatos outos passos, os livros ou são esquecidos ou voltam as páginas para outros olhos e outros pensamentos. Até o amor que foi nosso, esquece-se depressa da forma das nossas mãos e do volume do nosso abraço.
A única eternidade só dura o nosso próprio tempo. E as coisas eternas padecem de má memória.
Leio Eucanaã Ferraz: “Nem é verdade que os anéis se vão/e os dedos ficam. Museus barracas de quinquilharias/antiquários estão abarrotados dos anéis/sem dedos nenhuns – foram-se os dedos\ dedos custam caro – mas não duram muito./ Foram-se as luvas – vazias./Ficou o nome – porta luvas./Os dedos dão adeus/e sobram estes aros/brilhando/sem ninguém e sem remorsos.”
Talvez tivesse gostado de saber este poema quando a minha mãe me repetia e história da eternidade dos dedos. Talvez...
Talvez doesse menos quando descobrisse que eternos eram os anéis. Talvez...
Ou talvez não há outra forma de viver que não seja cada dor a seu tempo. O mesmo acontece, aliás, com a felicidade, da qual também só nós temos memória e tempo.