«Todas as pessoas, quaisquer que sejam as suas escolhas, devem defender os direitos umas das outras. Porque ninguém está a salvo, nunca.»J. P. Vale e N. A. Ferreira
Na minha família começamos a planear as férias em conjunto (um exercício sempre difícil) pelo que é consensual. Uma das primeiras coisas que optamos por introduzir é um conjunto de atividades culturais que inclua espetáculos, monumentos e museus. Conhecer uma região ou um país através da arte que aí se produz (ou produziu) é uma excelente porta de entrada para a sua história para a sua cultura e para as suas gentes.
O gosto pelas artes educa-se e aumenta com a diversidade, com a exposição a diferentes meios e linguagens, com o contraste entre diferentes visões da efemeridade da beleza ou da surpresa que nos inquieta ou provoca. Aumenta também com as conversas que temos à posteriori, com consciência de que há muitos ângulos para ver e modos diferente de ouvir a mesma peça e aumenta ainda mais quando temos consciência de quanto há para ver, ler, assistir, ouvir, de tantos modos diferentes.
Os museus, em particular, têm a capacidade de ser espaços singulares do universo onde o tempo e o espaço se dobram e encontram num único sítio e num único momento de maneiras improváveis. Umas vezes por terem obras de proveniências diferentes, outras por terem obras de vários artistas diferentes, outras ainda por terem várias obras da mesma autoria, mas de épocas diferentes, a maioria por ter uma combinação destes vários fatores.
Recentemente tivemos a oportunidade de visitar Serralves.
Por manifesta falta de espaço não vos falarei da indescritivelmente bela e alucinante exposição de Yayoi Kusama, nem das exposições comemorativas do 25 de Abril, onde figuram também algumas peças da artista madeirense Lourdes de Castro.
Escolho falar-vos de uma outra exposição, quase performativa, patente na Casa Cor-de-Rosa, um edifício Art Déco, cuja restauração esteve a cargo de Siza Vieira, que até 17 de novembro toma o nome de “Casa Vale Ferreira”.
A improvável entrada, diretamente pelo salão nobre, leva-nos diretamente para uma peça que ocupa a quase totalidade da sala com um enorme cabide circular onde estão pendurados cerca de cem blusões de couro, decorados com pinturas e aplicações de tecido, lantejoulas ou metal, cada um evocando uma personalidade LGBT, a maioria das quais artistas.
Logo à chegada, somos desafiados a “vestir” uma daquelas personalidades usando um daqueles blusões, pesados, no sentido físico e figurado, durante toda a visita.
A exposição reúne pela primeira vez um conjunto de várias peças e obras da dupla João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, juntos na arte e na vida há 20 anos, com peças que nos surpreendem, pelos materiais usados que incluem borrachas de lápis, areia, pastilha elástica mascada, invólucros de chocolates ou maços de Português Suave ou a recriação de parte de um dormitório de um navio baleeiro ou do aroma e som do fim de festa nas casas de banho pelas texturas, pelas cores. Mas, acima de tudo, que nos provocam, por mostrar o que, tantas vezes, muita gente prefere tentar não ver, ou esconder, por vezes de si mesma.
Quando despi o blusão, e me aliviei do seu peso e da responsabilidade de ter vestido aquela personalidade famosa, não pude deixar de me interrogar e refletir sobre o que é ter de viver num mundo de códigos, de sombras e de espelhos, sob o peso do segredo, de vidas paralelas que tantos e tantas viveram (e vivem ainda), sob o peso do julgamento de pessoas que acham que têm o direito de decidir quem é que as outras pessoas podem amar.
Uma das belezas da arte, é deixar-nos o peso de dúvidas que não tínhamos.
Quanto pesa uma alma, se não pudermos vivê-la às claras?