Lembro-me de ter ficado chocado, apesar de ter sabido de forma indirecta, e ter passado alguns dias a perguntar-me "porquê?" Veio a saber-se que era um pobre coitado que sonhava com as 70 virgens. Sorte foi que, além de uma evidente falta de competência, também lhe faltou determinação.
Por mais que não seja a primeira vez, por mais que se saiba que a Alemanha, onde vivo, é um país de costumes menos brandos que o meu Portugal (ou a minha Ilha) e, ainda por cima, mais apetecível ao ocasional terrorista a querer mandar uma mensagem, é-me sempre difícil imaginar que estas coisas possam acontecer tão perto de mim. O começo da semana que agora acaba provou-me o contrário. E entretanto tornei-me pai.
Acabara de almoçar quando o telemóvel tocou. Do outro lado, a minha mulher — num tom calmo — avisa-me que houve tiroteio no campus e que a polícia a confinara ao edifício onde trabalha. Ligou-me a avisar que, por morarmos ali mesmo ao lado do campus, eu também estaria fortemente aconselhado a não sair, já que o atirador ainda andava à solta. De imediato veio-me à cabeça o nosso filho, num dos infantários do campus; um óptimo local para um maluco se barricar, cheio de valiosos reféns. A minha mulher já se lembrara disso. "Liga para lá, por favor", pediu-me. Claro que sim. A chamada nem passou. Era aguentar os nervos mais um pouco.
Depois de uns momentos de algum pânico interior, acalmei-me com uma realização egoísta, que defendo ser natural: a sala do meu filho não é no edifício principal do infantário. No edifício de residências universitárias ao lado, ele não estaria no local mais óbvio para um maluco à procura de reféns de palmo-e-meio. Mesmo assim, senti-me sempre desconfortável. Eles podiam estar no espaço exterior, a brincar nos baloiços.
Lá me telefonaram do infantário, quase uma hora depois: as crianças estavam todas dentro, não teriam dado conta da movimentação exterior, e eu podia ir buscá-lo à hora normal.
Saí de casa com um livro no bolso. Segui as notícias na rádio local e sabia que o atirador estava morto, mas que a polícia ainda mantinha o cordão, para se certificar de que não havia um segundo atirador. Havia a hipótese de não poder ir buscar o meu filho.
Mantive-me afastado das barreiras policiais até chegar ao rio. Daí percorri a ciclovia que o acompanha, mesmo na periferia do campus. A barreira policial estava quinhentos metros para lá da porta onde ia buscar o meu filho. Voltamos pela mesma ciclovia, sem que ele se apercebesse do aparato policial.
O atirador, um jovem estudante de 18 anos, entrou por um auditório adentro e abriu fogo. Feriu quatro pessoas, fugiu e disparou, eventualmente, sobre si. Um dos feridos acabou por morrer antes do fim do dia. O porquê disto? Diz a polícia
que o jovem tinha problemas psicológicos.
Hoje o porquê é o menos importante; um pormenor. Hoje quero é saber que o meu filho está bem. Hoje eu quero é saber que me vou rir com ele ao fim do dia.