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Artigo de Opinião

1/01/2021 09:00

Houve quem se sentisse — compreensivelmente, pelas suas responsabilidades — sobrecarregado. Houve quem se sentisse acossado. Houve quem se sentisse isolado. Houve quem se sentisse apagado. Eu? Senti-me, principalmente, continuamente frustrado. Não gosto que me digam o que fazer apenas "porque sim". Não gosto de obediência acrítica. Não gosto de obediência apenas por ser mais fácil e cómodo. Senti-me sempre agrilhoado, sufocado e desumanizado. Posso ser apenas um grão na praia do Universo, mas sou e tenho o meu mundo; quem o quer invadir tem de me convencer das suas razões. A boa intenção tem de ser por mim aceite, quer por boa, quer por necessária.

Longe da terra e da família onde me criei, não fossem a minha mulher e filho, teriam sido dois anos de completa e opressiva solidão. Solidão, primeiro porque a socialização foi suspensa em nome da facilidade, depois porque a maioria das conversas com o teclado (as palavras lidas num ecrã sem a empatia que um olhar provoca, sem a contenção que a presença física exige) se tornaram actos de guerra. Aliados ou inimigos: nestes dois anos pouco ou nenhum espaço foi dado à moderação, à discussão saudável ou ao bom senso. A frustração de uns e outros deu azo a raivas de pouco sustento, acusações irretractáveis e silêncios ominosos.

A desesperança do tipo de situação que temos vivido abre sempre a porta ao profeta, seja o que promete esperança em troca da aceitação absoluta e acrítica da sua solução, seja o que desmente o anterior apenas por contrariar, oferecendo uma catarse para as frustrações das massas. A minha desesperança existe porque não vejo racionalidade: os sentimentos são esgrimidos como factos, os factos são torcidos, torturados e afastados até fazerem o sentido "certo", e o "ter razão" sobrepõe-se à razão. Deste estado de coisas, bem analisada a consciência e afastado o abominável princípio de que os fins justificam os meios, todos temos alguma responsabilidade. Ou culpa, se quisermos passar além do eufemismo.

Sendo este o primeiro dia do ano, convencionado dia de esperança e de pueril antecipação, farei, então, o esforço de apontar motivos para que tal sentimento em mim resista (porque os há, sempre).

Toda a natureza está em constante estado de co-evolução. Um conflito, por exemplo, evolui; seja no sentido da extinção de um dos lados, seja no sentido da sua continuidade, mas menos absoluto — menos prejudicial para qualquer dos lados. No triste decorrer do par de anos que hoje desejamos deixar para trás, vivemos dois conflitos — um mais evitável que o outro. Eu tenho esperança na suavização de um, e na extinção do outro (esperança maior e mais certa para um, minúscula e frouxa para o outro). O primeiro conflito é o natural, da humanidade contra o vírus, o segundo o ético-político, do indivíduo contra os profetas e messias que se preconizam pastores da humanidade.

Desta forma, tenho a esperança de que a empatia regresse às nossas relações sociais, tendo em conta de que todas elas implicam um certo nível de conflito (qualquer decisão, mesmo individual, é conflito), e qualquer conflito é mais leve e cordato quanto mais um lado consegue pôr-se no lugar do outro.

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