Agora que tenho trabalhado mais de perto com crianças, regresso frequentemente a esse território que muitos dizem ser apenas idealizado quando o mesmo já só prevalece no que resta da memória individual e coletiva.
Sim, idealizamos a infância como um tempo perfeito. É sempre um risco que corremos quando tendemos a acreditar que a felicidade só é possível no passado, porque o presente é demasiado complexo e próximo, e porque o futuro é demasiado distante e incerto.
O passado, principalmente o da nossa idade primeira, é um território seguro para ser feliz, quase perfeito. Mais não seja porque essa viagem da infância é a viagem sem regresso por excelência, seja porque crescemos, porque nos desencantamos, seja porque toda a complexidade cresce na mesma medida da nossa altura e da nossa idade.
Mas o regresso à infância é sempre possível se não desaprendermos a arte de nos baixarmos o suficiente para ainda vermos o mundo pelos olhos de uma criança.
Quem trabalha com crianças, ou simplesmente quem gosta de estar entre elas, habitua-se a esse baixar, que consiste em ficar ao nível físico de uma criança. E é desse ponto de vista que o mundo fica realmente mais fácil e mais feliz. Colocar-se ao nível de uma criança, não é apenas um movimento físico, é sobretudo deixar que esse gesto contamine a nossa visão do mundo e dos outros.
É um gesto de empatia para com as crianças, mas também para com a realidade que desse ponto de vista nos é apresentada.
Baixar-se para fazer de conta, baixar-se para voltar a acreditar, baixar-se para ver melhor os outros, baixar-se para ouvir, baixar-se para contar, baixar-se para compreender.
No seu discurso de aceitação do Prémio Princesa das Astúrias, a grande atriz Meryl Streep falou do ato de representar como um ato de empatia, como uma forma de nos colocarmos no papel do outro e depois conseguirmos, através desse papel, fazer com que todos se sintam mais próximos do que é diferente.
"Quando nascemos identificámo-nos com os outros, sentimos empatia por uma humanidade comum. Os bebés choram só de verem alguém chorar. Mas à medida que crescemos, reprimimos esses sentimentos e até os suprimimos para o resto da nossa vida, a favor da auto-preservação, de uma ideologia ou simplesmente porque desconfiamos dos motivos dos outros", disse Streep.
Colocar-se ao nível de uma criança, deixar que o seu faz de conta imaginário nos contamine, que a sua magia nos invada, e que uma certa inocência nos inspire, é, creio, voltarmos a essa empatia por uma humanidade comum. O jogo inocente do ‘era uma vez’ e do ‘faz de conta’ é a representação de um mundo sem barreiras entre todas as possibilidades e a sua concretização.
Baixar-se é permitir que um mundo melhor seja possível para nós e para os outros. Baixar-se é ver melhor, e, na maioria das vezes, também é perceber melhor e ser mais feliz. Baixar-se é subir mais alto. Baixar-se é regressar onde nos parecia impossível voltar. Baixar-se é regressar à infância. Ninguém diria que o regresso mais feliz faz-se em sentido descendente.