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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

6/08/2023 07:30

É uma casa longe, tão longe que é quase imaginária. Uma casa passado, uma casa outra. Uma casa para andar descalça e para conhecer pela planta dos pés. Para abrir janelas e deixar entrar uma outra geografia, e aprender a felicidade dos mapas.

Uma casa que começava pelos livros, pela base que sustinha e continha todo o universo, tal como a biblioteca de Borges.

Uma casa breve, como a chuva que caía torrencialmente dentro e fora do corpo, mesmo quando havia sol e nuvens a anunciar outra estação.

Uma casa para se regressar a pé, por uma rua com nome para soletrar como se aprendesse novamente a ler. A juntar vogais e consoantes, a aprender música pelo coração.

Uma casa que continha dentro todas as casas passadas e futuras, como um universo que repete, sem descanso, o era uma vez, e mais uma vez, e outra vez ainda. História perene de um breve momento fugaz, mortal e, por isso mesmo, belo.

Nada mais belo do que uma história que não termina, mesmo que tenha inscrito fim em todas as páginas. Uma história feita da nossa imortalidade impossível e, ainda assim, cheia de possibilidades de um infinito pessoal que trazemos sempre pela mão, como a criança que fomos e somos. Essa criança que encontramos, em surpresa, nos momentos que nos são mais felizes, e também nos outros, aqueles em que a desesperança e a impossibilidade nos devolve ao colo e ao chão.

Foi assim que aconteceu ao dar a mão ao que regredia até uma infância de silêncio. Uma ternura que se fez a morada mais improvável de um humano com todas as suas misérias e todas as suas transcendências. Exatamente nesse ponto onde somos mais verdade.

Não, nem sempre a casa abrigou o melhor de nós, mas também por isso se fez casa verdadeira, dentro da qual podíamos despir toda a nossa fragilidade e vestir toda a nossa força. Completos, íntegros, imperfeitos, nós.

Ir até ao momento em que nos vemos na nossa verdade mais crua, mais verdadeira, mais nua. Frente a frente com a nossa humanidade que nem sempre é bela. Essa humanidade que também é isto de sermos carne e espírito e a impossibilidade de conciliar o voo e a queda. No fundo, a humanidade é um desequilíbrio, uma impossibilidade, e só nesse jogo de improváveis existe a mais plena beleza e o mais profundo amor.

A casa ergue-se novamente como se nunca se tivesse desmoronado na nossa memória e na vida que a criou imperfeita e bela. A casa, como nós, é uma sobrevivente a todas as mortes possíveis e concretizáveis. É com todos estes traços, tintas e palavras que se desenha uma casa longe. Sempre mais longe do que a sua geografia real, sempre mais próxima do que a verdade de hoje. Sempre no meio da rua. Nem principio, nem fim.

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