A manhã era cinzenta e nua como a ilha. Era o tempo das férias, neste tempo recente de estranheza que nos vive a nós, em vez de sermos nós a viver o tempo. O cão, alheio a tudo o que não seja a urgência da alegria com que os cães sempre acordam, correu para o jardim e, na trajetória, apanhou desprevenido o pássaro.
Já o tinha visto na véspera, ao pássaro, a tentar fugir ao entusiasmo dos cães. No voo fugaz julguei que tinha fugido para um lugar seguro. Julguei ou desejei que, afinal, são coisas feitas da mesma matéria involuntária, imprevisível e incontrolável.
Mas o pássaro não tinha fugido para longe. Talvez por estar fraco, talvez por estar triste, talvez por estar cansado, talvez por estar velho, talvez porque a vida era menos forte do que a dos cães.
Fui apanhá-lo entre a vinha, deitado no chão de asas abertas, como se ainda fosse possível o céu, o ar e o voo. Segurei-o na minha mão naquela urgência de salvá-lo sem saber bem como. O pássaro era pequeno, quase sem peso, quase uma coisa que realmente não pertencia a este mundo das coisas que têm forma, e peso e substância. Mas tinha temperatura e provavelmente um coração que batia imperceptível. E, de repente, o pássaro deixou de respirar, ali, na minha mão. Rente à vida das minhas veias e da minha pele, a vida do pássaro deixou de ser. O pássaro deixou de ser pássaro e apenas se manteve inalterado o calor que ainda guardava como uma espécie de memória e aquela ausência de peso como quem já anunciava um fim.
A fragilidade tão grande da vida, a facilidade com que cessa, a velocidade com que termina, o silêncio que instaura, o desamparo que nos toma sempre de surpresa perante o que acaba. Tudo isto bateu com violência contra o meu peito e vieram-me de súbito todos os meus mortos, mas principalmente a morte que me levou a mim, que me tirou do sono e da alegria das coisas possíveis. Essa morte também nas minhas mãos. A tua, a grande, a maior. A mais cruel de todas as fragilidades e de todas as últimas coisas. A maior ausência de todas. De repente, a morte do pássaro era a tua, a vida do pássaro era a tua, a corrida para o salvar era a nossa. A derrota do pássaro era a nossa derrota. Uma derrota tao grande, uma fragilidade tão grande e novamente o regresso ao jardim, ao primeiro jardim de todos, ao nosso jardim, onde também voavam os pássaros que ainda estavam vivos. Onde também estávamos ainda vivos, ainda sem saber a fragilidade e o fim. E havia sol a pintar o verde e as pedras. E havia sol na mão ainda quente, nas mãos ainda quentes. A mesma mão que segurava agora o pássaro morto, a mesma mão que segura a memória da morte como quem ainda aprende a andar entre as coisas que se despedem.
Raquel Gonçalves escreve
à segunda-feira, de 4 em 4 semanas