O título retrata o que me disse o fisioterapeuta, referindo-se à prioridade que ele próprio atribui à amplitude que o meu braço direito deveria ainda granjear em detrimento do peso que o mesmo possa suportar neste estádio.
Para perceber isto é necessário começar do início ou até mesmo antes do início. Era uma vez um concerto dos Tinariwen – uma banda para além das fronteiras maliana e do sul da Argélia, do Sahara [parece não se poder dizer esta palavra sem se sentir o afago quente do deserto] –, que tocam uma espécie de blues tuaregue –, uma sala de espetáculos numa antiga oficina de camiões no Luxemburgo, e eu. Houve a música, os vultos do deserto que se somatizavam à nossa frente – apesar de não haver mulheres em palco –, depois, veio o autocarro e a decisão de correr para o apanhar pois àquela hora já havia poucos para minha casa, a intenção de [literalmente] arrepiar caminho, o pé que prendeu numa estrutura metálica e o corpo no chão amparado pela sua parte direita. A mão direita que se tornou sinistra, e deixou de responder, o pedido de auxílio a uma transeunte, os primeiros telefonemas, a ida para as urgências. No hospital, fiquei no mesmo quarto com o senhor luxemburguês de apelido Alles (Alles oder nichts, tudo ou nada, disse-me ele, e foi o começo de uma bonita amizade). Falámos de tudo e de nada – apenas substituindo a disjuntiva pela copulativa – e nos poucos dias que coabitámos introduzimo-nos mutuamente à prosa e à poesia do que somos. Depois do depois, veio a nostalgia das coisas simples: pentear-se, lavar os dentes, tomar banho, vestir-se, cozinhar, alimentar-se, em suma, a autonomia – dar-se a si mesmo a sua própria lei.
Ainda há dias, na sua carta aberta ao ministro dos negócios estrangeiros português publicada no PÚBLICO, a relatora especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, Francesca Albanese, relembrava a importância do artigo 7.º da Constituição Portuguesa, que reconhece o direito dos povos à autodeterminação. Da autodeterminação do indivíduo à autodeterminação dos povos não é só um pulo, é uma necessidade.
Ainda antes de estar impossibilitado de escrever com a mão direita, havia tomado notas sobre os incêndios na Madeira. Perguntei-me, ao ver as imagens da Fajã das Galinhas, o que deve fazer um jornalista quando vê alguém a chorar. Em muitas das localidades assoladas pelos incêndios, vi uma Madeira com a qual me identifico, que usa «senhor» e «senhora», que tem olhos francos, muito mais do que a Zona. No Curral das Freiras, havia tapetes de flores para honrar o Santíssimo Sacramento que levavam à mesma igreja que acolheu algumas das 160 pessoas desalojadas por causa dos incêndios, e faziam-se entrevistas com faúlhas a esvoaçar. Presenciei a força de uma voz que habitava uma camisa aberta com uma foice no ombro, afiançando que ninguém o tiraria dacolá, escarpas onde moravam vários «retornados» da Venezuela, da vida e da voragem, e fajãs, que não as da moda à beira-mar, onde as pedras caiam sem perguntarem porquê. A Madeira também é isto, mais o mato que a compõe.
Um dia depois da minha operação, aconteceu a cerimónia de abertura dos jogos paralímpicos em Paris, intitulada «de la discorde à la concorde» (da discórdia à concórdia) visto acontecer na Place de la Concorde, a maior de Paris. Espero que saibamos seguir o mote, e o que me disse o fisioterapeuta.
O ritmo da recuperação é o da Sumauma e não o da Rotina, como tão bem o retrata o saxofonista Francisco Andrade, no seu primeiro álbum, Linhas e Formas. Daqui por uns dias, voltarei a O voo do Moscardo, na versão dos Extreme, e estou relutante.
Garanto-vos que tudo isto, e muito mais, cabe no meu braço direito.