Na Serra de Água, onde no dia 14 começou o incêndio rural que queimou mais de 5.000 hectares na Madeira, o fogo cobriu a serra de negro, mas a população está decidida em “olhar em frente” depois da aflição.
“Isso era tudo trabalhado por aí acima. Era milho, batata-doce, couve. Não ficou nada. É uma dor”, começa por dizer à Lusa Maria Domingas Pestana enquanto mostra a encosta nas traseiras da sua casa, onde a vegetação está toda queimada.
Foi na Serra de Água, concelho da Ribeira Brava, que deflagrou o incêndio dominado apenas no início deste fim de semana, depois de se alastrar a mais três municípios da ilha da Madeira. Maria Domingas Pestana, de 77 anos, nunca mais vai esquecer os “momentos de aflição” da última semana.
“Para quem estava presente foi aterrador. Foi mesmo horrível. Eu saí para casa de uma sobrinha no Funchal na sexta-feira [16 de agosto] e voltei a casa na segunda-feira seguinte”, conta.
A conversa é subitamente interrompida por um ataque de tosse. “Este fumo faz-me mal à garganta”, justifica, após retomar a fala, referindo-se ao ambiente que paira no local.
Maria Domingas, que sempre viveu ali, já tinha perdido um terreno agrícola aquando dos incêndios de 2010. Mais de uma década depois, a artesã reformada diz que a sua casa só foi salva porque um vizinho começou a combater as chamas quando as labaredas circundavam a habitação.
“Se o rapaz não estava atento ou se só estivesse preocupado com a casa dele, a minha tinha queimado”, afirma.
Agora, diz, o tempo é o de continuar a limpar os estragos do fogo.
“Entrou muita cinza dentro de casa. Ainda estou a limpar. Vejo que a água da fonte está suja, não está boa. Temos de fazer comida com água do garrafão”, adianta.
Devido às condições da água, a Casa do Povo anunciou a abertura extraordinária das instalações entre sexta-feira e hoje até às 21:00 para distribuir água engarrafada pela população.
Numa das fontes da freguesia, Álvaro Faria avalia as condições da água. Na noite de sábado para domingo da semana passada, foi ali várias vezes buscar água para fazer frente às chamas.
“Os bombeiros não tinham água. Faltou água. Eu estive a acartar água daqui até mais ali acima. A água também acabou aqui [nesta fonte] e tivemos de ir à ribeira. Acartámos várias e várias vezes. Mais de três horas. Existiram casas que não estavam habitadas e que ficaram queimadas na Encumeada”, lembra.
Só graças ao “esforço da população e dos bombeiros” é que se conseguiu evitar um “cenário ainda pior”. Na freguesia, correm relatos de que vários animais que não resistiram ao incêndio, mas Álvaro Faria conta como numa das zonas altas conseguiram salvar um bezerro.
“Tínhamos baldes de 50 litros de água. Deitámos duas vezes e ele bebeu tudo. Bebeu 100 litros de água do nada, uma coisa absurda. Dá para ver o calor que estava”, recorda.
Ao lado da fonte, Encarnação Gouveia continua a limpar os vestígios do fogo à porta de casa, um trabalho que parece ser inglório face às cinzas transportadas a cada rajada de vento.
“Estive dois dias a lavar os terreiros. Estava tudo preto. Agora são as cinzas que continuam sempre por aqui”, explica.
Para Encarnação, contudo, o pior são os efeitos do incêndio na paisagem, outrora verde, agora arrasada.
“Quando me levanto da manhã, abro a cortina e olho para isto... dá dor no coração. É uma tristeza profunda. Esperemos que em pouco tempo isso se recompunha e fique tudo verde. É seguir para a frente”, diz.
Também Cláudia Amaral se diz “depressiva” com a paisagem devastada. É emigrante em Croydon (perto de Londres, Inglaterra), mas passa o mês de agosto todo na Serra de Água para que os filhos convivam com os avós na terra da mãe.
“É um desespero ver que o verde desapareceu. Para um emigrante voltar à sua terra e ver este negro é depressivo. É horrível. Para quem vive fora é horrível deixar esta imagem”, confessa.
A gestora de propriedades, que critica a falta de limpeza em vários terrenos da serra, ainda está a fazer contas aos prejuízos provocados pelo incêndio nos terrenos da família. Castanheiros, anoneiros, laranjeiras, ameixieiras e outras árvores: “Ardeu tudo.”
“Nesta zona as pessoas cultivam para consumo próprio. Quando veem as despesas a aumentar, aquilo é a salvação. Não vão gastar para ir ao supermercado comprar frutas, vegetais ou legumes”, explica.
Apesar de o fogo na Serra de Água ter sido extinto na segunda-feira, “ninguém consegue dormir”, salienta Cláudia, Porque existe “sempre a imagem de que o fogo está perto”.
“Estamos sempre alerta, mas temos a esperança de que, apesar de ter sido tudo destruído, a primavera vai voltar, nós vamos replantar e continuar. É olhar para a frente”, perspetiva.
Após deflagrar no dia 14 no concelho da Ribeira Brava, o incêndio rural na ilha da Madeira propagou-se progressivamente aos concelhos de Câmara de Lobos, Ponta do Sol e Santana. Hoje de manhã, ao 11.º dia, a Proteção Civil indicou que o fogo está controlado e que os operacionais se mantêm no terreno em fase de rescaldo, controlando alguns pontos quentes.
Nestes dias, as autoridades deram indicação a perto de 200 pessoas para saírem das suas habitações por precaução e disponibilizaram equipamentos públicos de acolhimento, mas muitos moradores foram regressando, à exceção dos da Fajã das Galinhas, em Câmara de Lobos.