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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

21/06/2024 08:00

Perto da casa dos meus pais, havia uma vizinha cuja vida, para a época, seria um pouco incomum. Era solteira, independente, creio que enfermeira de profissão. Não me recordo de a ver receber visita de familiares ou amigos. Tinha uma figura alta e esguia e aparência cuidada, sem espaventos. Saía diariamente para o trabalho e frequentemente em lazer. Viver só não parecia constituir problema, antes pelo contrário, a liberdade parecia agradar-lhe.

A Menina X, designemo-la assim, ainda que não mantivesse grande intimidade com a vizinhança, era cordial quando se cruzava connosco. A sua casa ficava abaixo do nível da estrada, de onde apenas se lhe via o telhado de uma água só, que descia em suave declive desde a cumeeira, quase encostada ao asfalto do caminho, até ao beiral sobranceiro ao pequeno terreiro na frente da habitação, de onde espreitavam as cristas de algumas plantas que lá cresciam. Era assim a sua casinha; minúscula e de teto baixo, que eu fantasiava igual à dos anões da história da Branca de Neve.

Num desses dias em que nos cruzámos, a Menina X disse ter uma coisa para me mostrar e, com a permissão dos meus pais, levou-me a entrar no seu casulo. Descemos os poucos degraus de acesso ao terreiro, cada um deles ladeado por um vaso com uma planta, o que nos forçava a caminhar em diagonal, uma atrás da outra, porque ela não me largou a mão.

Um pouco apreensiva, vi-a rodar chave na fechadura da porta de entrada, simultaneamente, desejando e temendo que quando ela se abrisse surgissem os sete anões ou, pelo menos, um ou dois deles.

Não sou capaz de descrever em detalhe a divisão pouco iluminada em que entrei, que servia de quarto de dormir e sala de estar, mas recordo bem o que chamou de imediato a minha atenção e que era, na verdade, o propósito do convite. Ali mesmo, quase junto à porta, de pernas rígidas esticadas sobre o estofo de veludo grená de um cadeirão, estava uma boneca grande, a fixar-me, de olhos bem abertos e sorriso róseo. O seu cabelo lanígero, cuidadosamente enrolado, arrumava-se em caracóis a emoldurar-lhe o rosto corado. Eu, que adorava bonecas, fiquei deliciada. E havia mais para ver neste exemplar: movimentando-lhe as pernas, fazíamo-la oscilar a cabeça para um lado e para a outro e, pestanejante, ouvíamo-la dizer algo que soava como “mamã”.

A partir daquele dia, ficou descoberto que, debaixo daquelas telhas queimadas pelo sol, não havia Brancas de Neve, nem anõezinhos, mas sim uma grande boneca. Pouco depois, também eu havia de ter uma idêntica, trazida de Espanha pelos meus padrinhos — era a Kika. Não faço ideia porque tinha esse nome. Possivelmente seria o que estava escrito na caixa.

A vida continuou, passaram os anos, a Menina X envelheceu e, após a sua morte, a casinha ficou abandonada. Ninguém a reclamou senão a corriola de campânulas rosa (Clytostoma callistegioides) que a cobriu por completo. O telhado ruiu sob o peso do tempo e da vegetação e as lagartixas vivem por ali em permanente festim. Quando, da estrada, olho a profusão de flores, pergunto-me se a boneca, ou algum vestígio dela, ainda lá estará. Gosto de pensar que não; que não terá perecido em tamanha solidão. Na minha memória, mantenho-a viva, gloriosa na sua saia rodada e perna estendida sobre o veludo.

Afasto-me sorrindo com esta lembrança de infância e, algumas vezes, levo até uma cachopa de campânulas rosadas para alindar uma jarra.

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