Escrevo-te, filha, no dia em que nasces. Há doze anos, eu sabia-te apenas do meu corpo, imaginava-te mar sob as tuas veias iniciáticas, prontas, conduzidas até lugares de mim que para sempre jamais saberei. Eu não sabia nem quereria saber. Estás aqui. Chegaste como a árvore que regressa de dentro da terra, com os teus olhos profundíssimos da mulher em que te vais tornando, à luz deste terror que me toma com incomensurável beleza, esse terror materno que cresce na exacta medida em que se vai dissipando a intersecção dos nossos corpos. E então, inutilmente, eu procuro preparar-me para a extinção desse cordão, para o embate tremendo do teu corpo soltando-se das minhas mãos. Tremo, como no primeiro dia, talvez mais ainda, agora, que é de novo madrugada e sorvo a claridade da tua sombra até tocar no teu nome.
Não serei nunca um corpo desprendido; por mais que o tempo teime nesse ensaio, eu corro para a força toda das tuas ondas, remo a favor da inocência que ilude o sopro e o grito, colho a corrente e entro no quarto silencioso onde guardarei a inaugural ternura do choro e do riso, o cheiro da tua cabeça, pequeníssima, moldado ao osso íngreme do meu peito. Não durmo. Filha, a imensidão de ti na casa inteira, na ilha que me reveste de todo o mar e de todas as rochas, desde aquela madrugada de um Domingo que foi, que é ainda, um milagre.
Cresces, a tua mão é morna, rápida e destemida; adivinho-te belezas e coragens que eu nunca tive - ou talvez estivessem guardadas para ti -, determinas a tua luz pelos desertos e apontas ao coração onde vês temor e fragilidade. Herdaste-me inclinações vastas de que não abdico e desistências de que me rio. Por vezes, este abalo. És, como eu, hábil na triagem, na intuição e no tempo que desenhas para os regressos. Ao contrário de mim, raramente tens frio ou medos infundados, vibras com glórias, não te rendes com um beijo nem te resguardas, ainda que indagues o voo e, então, o recuses com a tua boca definitiva. Se soubessem... É tão tamanha a compaixão, que precisa da espessura da tua superfície. Uma ilha está aqui. Reconheço-te uma maturidade a que muitos adultos não chegam, essa concha perpétua onde dificilmente poderão desalojar-te da infância. É outra vez madrugada em Novembro; uma filha.
”Mãe, o mar nunca dorme, pois não?” Sossego, afinal. Hás-de crescer e voltar, devolvendo-me, como hoje, e sempre sem fim, ao princípio.
Susana de Figueiredo escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas