Após ter concluído a quarta classe na escola da Quinta das Freiras, em Santo António, eu ia lá uma vez por ano visitar a professora primária. A visita fora imposta pela minha mãe, em jeito de cortesia e agradecimento pelo seu empenho na minha instrução inicial, que fiz de seguida, sem repetir nenhuma classe, embora também sem qualquer brilhantismo e com dificuldade em tudo, na Matemática, na Leitura e na Ortografia. De modo que todos os anos, uma vez por ano, durante vários anos, talvez até aos 15, lá ia eu visitar a senhora professora que me ensinou a ler, a escrever e a contar.
A escola, um edifício antigo que foi demolido há pouco tempo, ficava à beira do Campo do Marítimo, na margem direita da Ribeira Grande, e eu saía de casa a pé e levava sempre uma prenda, que era sempre um produto da nossa fazenda consoante a época do ano – anonas, abacates, cana-de-açúcar, uvas, bananas – e também levava flores do nosso jardim, um ramo enorme, mesmo grande.
Eu ia sempre envergonhado e desconfortável pelo caminho abaixo, sobretudo ao passar pela venda do André, todos os dias cheia de clientes, por causa das flores e do peso da fruta e da roupa nova, pois era a roupa mais nova que usava naquela visita – outra imposição da minha mãe.
A professora Graça recebia-me efusivamente, muito alegre e sorridente, com beijos quentes, húmidos e ruidosos, um de cada lado da cara, e eu ficava atarantado com tanta simpatiza. No decurso das aulas ela fora sempre dura, rígida, austera, de recurso frequente à palmatória, sem olhar a quem, assim que, por um instante, até parecia outra pessoa.
Eu tentava chegar em cima da hora do intervalo, para não incomodar, mas devido ao insondável mistério do tempo e à pressa para me libertar das prendas e das flores, o facto é que, invariavelmente, batia à porta da sala dez ou quinze minutos antes e a festa decorria à frente da turma.
– Olha o Duarte! – Dizia ela, surpreendida.
E depois, entusiasmada:
– Olha que flores tão lindas!
Um beijo do lado direito.
– Olha que fruta tão bonita!
Outro beijo do lado esquerdo.
– E a mãe, como está?
A mão a desfazer-me o penteado.
– Diz obrigada à mãe!
Em parte, penso eu agora, a minha súbita aparição devia constituir um momento de alívio para os miúdos, um segundo para relaxar. É óbvio que sim. Eu conhecia bem a dureza das suas aulas e, apesar do embaraço, ficava feliz por eles.
Depois, porém, seguiam-se dez ou quinze minutos de sobressalto para mim, já que a professora me pedia para assistir ao resto da aula, até ao intervalo, e eu sentava-me numa carteira ao fundo e ela chamava um dos alunos ao quadro para resolver um exercício de Matemática, ou para responder a uma pergunta de Gramática, ou para escrever uma palavra difícil, por exemplo daquelas que nunca se sabe ao certo se é com ‘z’, com ‘s’, com ‘ç’ ou com ‘ss’.
Regra geral, o visado não sabia e então ela ficava furiosa, dizia que era uma vergonha, uma lamentável falta de estudo, uma evidente burrice, pois como era possível não saber aquilo, se ainda ontem tinham falado do assunto e hoje de manhã também, uma coisa tão simples, e depois olhava para mim e dizia assim:
– Querem ver que tenho de chamar o Duarte ao quadro para vos mostrar como se faz.
Este era o momento que eu mais temia.
Eu também, regra geral, não sabia.
– Ele já está no 7.º ano, mas vocês cá não passam deste.
Eu, porém, não sabia.
– Querem ver, querem ver... – Dizia a professora.
E eu ali a suar, o coração aos pulos, completamente atordoado com o eco da minha ignorância, perdido entre o medo de ser mesmo chamado ao quadro e o pulsar da humilhação iminente, zonzo com o cheiro do giz e das aparas de lápis, inebriado com o odor da tinta e da cola, meu Deus, eu ali a cair inteiro no vazio de mim, sem rede, sem chão, até que um aluno levantava o braço e dava a resposta correta.
Ufa!
Na verdade, eu não sei nada. Eu nunca sei nada.
E, no entanto, aprendi tanto com a professora Graça.