A mais pequena chegou com um desafio daqueles que amiúde fazem entre eles na escola: "Se a tua mãe e o teu marido estivessem a morrer, e só pudesses salvar um, quem é que salvavas?". E ela lá me respondeu foi muito fácil e que não tinha dúvidas que salvava a mãe, que "é mais importante". Ora, tendo em conta que aos 8 anos não se vislumbra marido no horizonte, a resposta não poderia ser outra. E se depressa decidiu, mais depressa se justificou: "Nunca se recupera da morte da mãe, não é?
Não consegui responder de imediato, porque com os anos a passar, passamos a perder a capacidade da abstração e da brincadeira e tudo assume contornos de caso sério. Assim, comecei a pensar na má hipotética decisão da catraia para um cenário, que, se espera, continue no âmbito da irrealidade. Pois que não podia tomar essa decisão de ânimo leve, então e se já tivessem filhos? Ficavam os meus pobres netos, que hão-de existir, órfãos de pai? A angústia começou a tomar conta de mim, e estive a um segundo de dizer-lhe que tinha de salvar o futuro marido, que deixasse a mãe ir em paz, que assim, como assim, já devia ter vivido a sua vida e já tinha os filhos criados. Pedi uma morte pouco dolorosa e pus o destino nas mãos de Deus.
Então surgiu-me resposta para a pergunta. "Não, não se recupera da morte da mãe". Pois que outro ser no mundo põe os filhos à frente de tudo e tem incapacidade para lidar com sofrimento, mesmo que hipotético, dos filhos? Por isso, nunca se recupera, porque sabemos que quando perdemos a mãe, nunca mais teremos aquele amor que tudo perdoa, que tudo dá, que nada ou muito pouco exige. Coitada da miúda, a ter que abdicar disso para que os seus filhos não ficassem sem pai. Revolveram-se-me as entranhas, quando imaginei que até pudesse estar grávida ou ter os meninos pequenos e assim sem mãe para a ajudar e para a consolar por precisamente ter perdido a mãe.
O jogo tornou-se insuportável e ela a insistir na validação do caminho escolhido com orgulho: "Mãe, escolhi bem?". Dei-lhe um beijinho e disse-lhe que podiam fazer estes desafios sem mortes. "Se tivesses de escolher comer chocolate todos os dias ou gelado de morango", sugeri, arrependendo-me de imediato da proposta, que de qualquer maneira, teria efeitos nefasto para a menina. "Ó mãe, é só uma brincadeira". E eu disse-lhe: "Não se brinca com coisas sérias" e percebi que estou cada vez mais igual à minha. E agradeci, não é todos os dias que nos salvam, mas é verdade que os filhos nos salvam muitas vezes. "Ó mãe, não sabes brincar".