Tratar os outros como gostaríamos que nos tratassem a nós é uma regra que, apesar de simples, resolveria grande parte dos problemas do mundo. Não apenas os problemas da esfera mais doméstica, mas também os problemas globais. Pensar nos nossos filhos quando atiramos guerra para os países dos filhos dos outros, pensar nos pais quando erramos nas políticas de apoio aos mais velhos, pensar na nossa família quando descuramos a proteção da sociedade, pensar em sermos corretos quando falhamos a correção com os outros, o respeito pelos outros, o amor pelos outros.
Infelizmente, estas regras básicas de uma ética humana têm vindo a ser sucessivamente atropeladas, esquecidas, menosprezadas, desrespeitadas.
Penso que vivemos um tempo em que estamos a retroceder em muitas coisas: na liberdade, na compaixão, na igualdade, na paz, no respeito, na lealdade e na democracia, que é a guardiã e a garantia de que todos estes valores podem existir e devem ser praticados.
De todas as atrocidades que vemos, talvez a discriminação seja a mais vil e infame, porque discrimina e trata como diferente o que é igual. A cor, a etnia, a religião, o género não nos separa, não nos torna superiores ou inferiores. A massa humana de que somos feitos é a mesma e deveria unir-nos e não separar, segregar. Não devíamos, por isso, deixar os discursos de ódio vencerem, esses mesmos discursos que ganharam força com a subida de partidos extremistas, nomeadamente da Direita e que apelam ao que de mais baixo existe.
Em 2024, a palavra “liberdade” foi eleita a palavra do ano, fazendo eco da celebração dos 50 anos de Abril, mas 2024 acabou da pior forma com imagens que nos fazem lembrar as piores atrocidades e abusos. Na Rua do Benformoso, em Lisboa, imigrantes foram encostados à parede numa imagem que choca, numa ação perfeitamente desnecessária, e numa prática sem fundamento na nossa democracia e que é atentatória dos Direitos Humanos.
Os imigrantes são já parte essencial do nosso país, contribuem para a nossa economia, ocupam lugares de trabalho onde existe falta de mão de obra, criam aqui os seus filhos e invertem a tendência de um país a envelhecer, enriquecem a nossa cultura com a sua cultura. São nossos vizinhos, amigos, compatriotas de outras paragens. São outros de nós no mundo, como nós já fomos e ainda somos em outras paragens.
Cito o que disse o grande artista Dino Santiago a propósito desta operação: “A cena gravada na Rua do Benformoso não foi apenas um ato de violência contra imigrantes; foi um ato de violência contra a alma de uma nação inteira. Uma nação que há muito se orgulha de ser ponte entre mundos, mas que agora, sem pudor, ergue muros invisíveis contra aqueles que ousam existir à margem do seu conforto. Aqueles corpos encostados à parede não eram criminosos — eram espelhos. Espelhos do medo que carregamos, da nossa hipocrisia, daquilo que nos recusamos a ver”. Mas disse ainda mais, falando sobre “o silêncio de quem observa, a apatia de quem consente, o conformismo de quem acredita que estas coisas só acontecem aos outros”, e recordando que, um dia, “esses ‘outros’ podem ser os teus, a pele encostada à parede poderia ser a do teu filho, do teu avô, da tua irmã”.
Por tudo isto, não podemos calar, nem aceitar, porque a atrocidade que hoje se comete contra aqueles que dizemos serem os outros, os diferentes, pode transformar-se numa prática que nos atingirá a todos. Porque quando permitimos a desumanidade, tornamos o mal banal e aceite.
Já o poeta Bertold Brecht nos tinha alertado, deixando à poesia essa visão da verdade. “Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro/ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso/ Porque eu não sou miserável (...) Agora estão me levando/ Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém/ Ninguém se importa comigo”.
Por isso, perante a infâmia, devemos sempre perguntar: E quando formos nós?