Às vezes é como se regressasse. Está lá tudo com uma nitidez de hoje.
A casa ergue-se como se ainda habitada. O cão da esquina ainda espera pela mão e pelo que da saudade de outro cão lhe sobra para ele.
Há, como se num presente inalterado, as diversas fases da luz do jardim ao longo do dia. Mas sobretudo tu ainda estás lá com os livros como moldura. É nesse momento que eu regresso à porta só para confirmar que sorris de volta. E, por algum truque da memória, é isso mesmo que fazes. E o dia embala novamente como se fosse hoje mesmo, como se nada morresse, como se a imortalidade fosse, afinal, mais do que uma hipótese ficcional.
Mas é claro que aqui há demasiada água e um desespero quase calmo. De nada vale a revolta contra a respiração que cessou.
Ainda assim, quase que regresso ao rio, ao caminho ao longo do rio. E o verde é como uma onda que me traz de volta uma memória da vida, de uma vida outra, de uma vida certa.
Nesse exato momento, contra a geografia, volto a subir a rua, a tocar no cão, ou a correr à frente do teu sorriso lento. E depois volto para trás, para a mão que espera e que desenha essa possibilidade de um outro tempo.
Estou novamente em casa, a luz volta a entrar pela janela quadro do fundo. Lá fora está a memória inicial das coisas. Uma história terrível, um segredo que se desvenda em simultâneo e a saudade já a nascer das pedras ou de uma ideia de casa.
Lá fora está o medo inicial de quem sabe que vai mergulhar sem depois conseguir voltar à superfície. O tempo em que a apneia, era, apesar de tudo, um estado quase natural, feliz mesmo, como se o mundo estivesse todo condensado nesse espaço em que respiramos por um outro. E pensamos ser realmente possível respirar por um outro por dentro da morte ou da possibilidade dela. A luz afasta todos os medos. É assim na infância, como é agora.
Este é um regresso que se faz de forma profundamente dolorosa, porque nada regressa realmente. Mas tudo é tão nítido que se torna uma segunda pele por dentro desta casca onde se encerram os dias.
Talvez tenha imaginado tudo isto num desses lugares também imaginários do passado. Talvez naquela soleira da porta onde olhava o mar e pensava na felicidade futura. Pensava em ultrapassar a linha daquele horizonte líquido e encontrar do outro lado talvez um país, um amor, ou a mim mesma. Afinal, não será tudo a mesma coisa?
Sim, talvez tudo foi imaginado nessa soleira da porta de uma casa que também já não existe no desenho destes dias.
O mais certo é ter imaginado, inventado, criado a memória de tudo isto. Até mesmo do cão na esquina que continua à espera da mão que o afaga. Eu e o cão, deitados ao sol numa mesma espera. Falta a mão e o sorriso por detrás dela. Vai faltar sempre. Mas ninguém sabe esperar tão bem como uma mulher ou como um cão. Ficamos silenciosamente à espera e a imaginar regressos que nunca acontecem. Somos como um cão à espera, mesmo que só um de nós seja um cão de verdade. E, ainda assim, não há certeza de que não sejamos todos cães sentados à espera.