Maria fechou a porta e escorregou de costas por ela abaixo e quis deixar de estar viva e o coração doeu-lhe e ela sentiu-se mesmo a morrer, quando de repente o choro do bebé a despertou. Não, não lhe podia faltar. Não agora, que já lhe faltava o pai. Aproximou-se do berço, ergueu a criatura – o seu querido filho – e nesse dia prometeu-lhe mundos e fundos, mesmo sabendo que não tinha fundo, nem mundo, nem nada que lhe dar e no meio da promessa chorou e no meio do choro lembrou-se da sua insistência para que o marido fugisse, ela tinha insistido tanto para que ele fugisse.
Quem trouxe a notícia da guerra foi Manuel Canhoto, um tipo baixo, gordo e afogueado que era proprietário de extensas terras por aquelas bandas e aparecia de tempos a tempos para colher os lucros e saber das andanças da sua gente. Ouvia as explicações dos agricultores com ar muito pesado e circunspecto, praticamente sem abrir a boca, mas depois de tudo estar resolvido, rendia o corpo e o espírito à alegria e então começava a falar e a rir que nunca mais acabava.
Emborcava litros de vinho seco na venda e explodia em gargalhadas sem mais nem menos, enquanto relatava as novidades da capital, o único sítio onde aconteciam coisas relevantes, e estava sempre rodeado por uma pequena multidão altamente interessada nas suas narrativas e ele dizia verdades e mentiras em enxurrada, ambas muito ampliadas e fantasiadas, e o povo – coitado – ficava ali perdido de boca aberta entre o medo e a fascinação, como lenha na fogueira da ignorância.
– O mundo está em guerra – declarou certo dia, cara séria, copo na mão.
Um burburinho de espanto percorreu a assistência, mas alguém retorquiu com esperteza:
– O mundo está sempre em guerra!
Todos concordaram, aliviados.
Manuel Canhoto respirou fundo e contra-atacou:
– Sim, só que agora os nossos rapazes vão ser chamados.
Depois, sentindo o efeito nefasto do terror na alma das pessoas, avançou com a solução:
– Por mim, quem puder fugir que fuja.
E a seguir lançou os dados do negócio:
– Quem precisar da minha ajuda, venha depois falar comigo – e meteu o copo à boca, fazendo-se desinteressado.
Maria ouviu a conversa e correu para casa e disse ao marido:
– Vai já falar com o Manuel Canhoto.
Ele, porém, encolheu-se.
– Ó homem mexe-te! – Insistiu Maria. – Olha que ele só fica até quinta-feira.
Era já terça, mas Augusto não se decidia. Tímido, muito tímido, tinha mais medo dos imprevistos do que das certezas consumadas.
A mulher baixou os braços, desconsolada, aflita, desgostosa.
– O que foi? – Perguntou ele.
– O teu filho nasceu há dois meses e tu vais para a guerra – disse, irritada.
Virou-lhe as costas e foi ver o bebé e na manhã seguinte recorreu desesperada a uma nova forma de persuasão, que tinha ganhado força durante a noite entre a insónia e os pesadelos.
– A minha mãe tinha razão – disse-lhe enquanto se vestiam. – Eu devia era ter casado com o Fernandes, que esse já falou e agora anda todo contente a dizer que não vai para a guerra.
O marido fingiu desatenção, mas ao sair de casa disse, convicto, que nesse dia iria procurar o Manuel Canhoto. Era quarta-feira. Regressou à noitinha metido numa grande angústia e sem palavras para se explicar, até que na hora em que se sentaram na cama revelou o que tinha acontecido.
– O Manuel Canhoto pede X para me livrar da guerra.
Maria estremeceu. Era muito dinheiro! Nem que ele roubasse, nem que ela se prostituísse, pensou. Nunca teriam tanto dinheiro! Nunca! Era mesmo muito dinheiro! Desarmada, desfez-se em lágrimas e abraçou o marido e depois, certa da inevitabilidade da guerra, assumiu a amargura, a falta de esperança e disse:
– Por enquanto ainda nos temos, meu amor.