O rapaz atirou a faca com força para o meio do silvado, do outro lado da ribeira, e pensou que seria impossível encontrá-la e continuou a correr e corria tão veloz no escuro da meia-noite como se fosse meio-dia no verão e pensou na mãe, a sua querida mãe, pensou que ninguém tinha o direito de insultá-la, ninguém, nem em vida, nem agora depois de morta, ninguém, e meteu-se dentro de casa sem ser visto, nem corpo, nem sombra. Esperou sem dormir e saiu quando os pássaros começaram a cantar, às cinco e meia, como sempre a caminho da fazenda onde trabalhava e o frio da madrugada refê-lo da tormenta e da insónia, de modo que quando avistou as primeiras casas do outro lado do lombo ia já como um homem novo.
Nisto, encontraram o Fernandes estendido à porta de casa imerso num banho de sangue e vinho azedo, furado na barriga e nas costas – duas facadas bem fundas. Os vizinhos bateram à porta e o seu irmão mais novo, o último dos três, veio ver a desgraça e deparou-se com dois cachorros a lamber aquela porcaria à volta do cadáver e ficou tão desorientado e fora de si e foi buscar a caçadeira de dois canos e abateu logo um dos bichos e disparou também sobre o outro, que fugiu a ganir com chumbo nas patas. Depois, precipitou-se sobre o defunto com jeito de querer trazê-lo de novo à vida e pôs-se a gritar de tal modo alucinado que a todos lembrou os berros da cunhada quando, há sete anos, tinha dado com o marido enforcado no castanheiro.
Entre os presentes estava Manuel, o taberneiro, e ele mal chegou ali descobriu o mistério da faca desaparecida do bar na noite anterior e sentiu-se triste por isso e foi ter com o irmão do morto, agora sentado na soleira da porta com a caçadeira no colo e as mãos a tapar a cara e disse-lhe baixinho:
– Tem calma.
O outro falou como se fosse o Diabo:
– Eu vou matar aquele estupor.
– Sabes lá quem foi...
O taberneiro sentia-se a sufocar naquela atmosfera de violência e mais sufocado ficou ao ver o rapaz chegar, aparentemente calmo e fresco como se tivesse dormido toda a noite em lençóis de seda. Sabia que tinha sido ele, mas não estava disposto a denunciá-lo. Gostava do rapaz, quase como se fosse seu filho, e foi ter com ele, tentou afastá-lo, o braço à volta do pescoço, a boca encostada ao ouvido, conselho acertado, prudente:
– Vai-te embora daqui, rapaz. Vai para a cidade. Vai para o estrangeiro.
– Tudo o que tenho está aqui – disse o rapaz com desarme na voz, como se fosse chorar.
– A tua vida vale mais do que tudo o que tens aqui – disse o taberneiro. – Vai-te embora. Salva-te.
Estavam ambos de costas viradas para o cadáver, à roda do qual se juntava cada vez mais gente e circulavam todos num murmúrio de velório, enfiados nas suas roupas escuras, carrancudos, sombrios, mais frios do que o frio da manhã, quando de repente surgiram os canos compridos da caçadeira no meio das pessoas e no enfiamento deles o olho direito do irmão do morto, trémulo e esbugalhado, como uma estrela quase a perder a vida.
– Afaste-se, senhor Manel! – Gritou.
Apanhado de surpresa, o taberneiro abriu os braços, numa tentativa de proteger o rapaz, passando-o para atrás de si.
– Olhe que é um tiro para cada um! – Ameaçou o irmão do morto, sempre a fazer pontaria, o lado esquerdo do rosto arreganhado, dentes à mostra e o tempo a passar e o silêncio a marcar a hora e então o rapaz afastou o taberneiro e ficou parado diante do atirador, três metros à sua frente, ficou a olhar para ele calado, à espera, e o outro sempre a apontar e nisto rolou uma eternidade e toda a gente pensou que o rapaz ia morrer naquele instante, mas depois o rapaz virou-lhe a costas e avisou o taberneiro que ia trabalhar nuns poios ali perto pelo que viria almoçar na venda.
– Ponha-me um pão e uma lata de sardinhas à mão – disse.
Depois, meteu por um beco entre duas casas e desapareceu da vista das pessoas.
O outro ficou com a arma apontada ao vazio e tentava compreender por que não tinha premido o gatilho e dizia em voz baixa:
– Covarde.
E repetia em voz baixa:
– Covarde.