O avô tinha um canivete com cabo de madrepérola e duas lâminas, uma pequenina, que usava sobretudo para limpar as unhas, outra maior, talvez com dez centímetros, que utilizava para talhar figuras misteriosas em pedaços de madeira que raramente excediam o tamanho da sua mão, às vezes pareciam monstros, outras vezes anjos, e fazia-as enquanto esperava pelo jantar sentado num banco à porta da cozinha, do lado de fora, e ela nunca mais esqueceu a vez em que, estando ele a afiar um pau num dia infinito de verão, tinha ela oito ou dez anos, do nada lhe disse assim:
– Nunca tenhas medo de Deus nem do Diabo.
Suspendeu o trabalho e olhou-a nos olhos. A navalha parada na mão esquerda. A madeira quieta na mão direita. As aparas no chão, junto aos pés.
– Deus e o Diabo são a mesma coisa, vê lá tu!
O avô era um velho republicano, quase comunista, ateu sem remissão.
– Está tudo aqui – disse ele, apontando com o pedaço de pau para a cabeça.
Ela olhava-o boquiaberta e começou a sentir que tinha entrado num sonho.
– Está tudo aqui – repetiu ele, batendo com a mão que segurava o canivete no peito, no lado do coração.
Depois, continuou a golpear a madeira e disse:
– Deus e o Diabo são gente como nós, como tu e eu.
A seguir olhou para o chão e afastou as aparas, primeiro com o pé direito, depois com o pé esquerdo, e acrescentou:
– Nunca tenhas medo deles.
Ela lembrava-se tão bem daquele ensinamento e hoje, passados tantos anos, a lembrança tornara-se ainda mais viva diante da vizinha que viera bater-lhe à porta a pedir ajuda. Era uma mulher horrível, aquela vizinha, simplesmente horrível. Tinha três filhos e o mais velho tinha fugido do país para não ir à guerra. Andara perdido no mundo durante dez anos, mas regressara a casa há seis dias e estava a dormir desde então.
– Nunca mais acorda – diziam uns.
– Foi doença que apanhou no estrangeiro – asseguravam outros.
– É castigo divino por ter fugido da guerra – segredavam alguns.
A mãe recorreu à curandeira do sítio e ela foi clara na prescrição:
– A mulher que ele ama tem de ir vê-lo, sabes, aquela cujo marido morreu no Ultramar, aquela que nunca o quis. Basta que ela o veja.
A velha resistiu três dias, mas acabou por ir bater à porta da vizinha.
– Vem ver o meu filho – pediu-lhe de olhos baixos.
– Mas porquê?! – Admirou-se a viúva.
– Talvez ele acorde.... Sabes o amor que tem por ti...
E a conversa fez-lhe doer o coração.
A viúva percebeu a contrariedade e o desespero da vizinha e também tinha plena consciência de que ela estava ali a mando da bruxa, pois toda a gente no sítio sabia que era incapaz de dar um passo sem a consultar. Fazia-o por tudo e por nada, mas sobretudo pelos constantes males que se abatiam sobre si, como, por exemplo, o poio onde nada germinava por estar amaldiçoado, ou a cabra sem leite por causa do mau-olhado, ou a árvore que não dava fruto por ordem do Diabo, e então, estando ali defronte daquela mulher horrorosa, lembrou-se do ensinamento do avô.
– Está bem. Vamos lá vê-lo – disse.
Mal transpôs a porta da casa da vizinha sentiu um forte odor a incenso queimado e esse odor misturava-se com outros ainda mais esquisitos e impossíveis de identificar, nauseabundos, de modo que passou logo ao quarto do doente e viu-o estendido na cama, sereno e imóvel, como um cadáver prestes a ressuscitar, e lançou um olhar veloz pelo quarto, onde havia um armário, uma arca, uma mesinha de cabeceira, um crucifixo na parede por cima do catre e também viu junto da janela, que era pequena e atrofiada e estava fechada, os dois filhos mais novos da vizinha, jovens rijos e espantados, fantasmagóricos, e de repente um arrepio tomou-lhe o corpo inteiro por dentro e ela sentiu uma vertigem sem fim.
– Pronto, já o vi – disse.
E saiu a correr, como se fosse Deus a fugir do Mal ou o Diabo a fugir do Bem.