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Artigo de Opinião

Diretor

3/08/2024 08:05

Primeiro, o Bores

O Bores é lindo. Mostra um pêlo aparentemente bem tratado. Tem orelhas espevitadas e compridas. Tem um ar doce. Deixa-se fotografar em poses calmas. E é dono de um poderoso olhar de lince.

O Bores é, na verdade, um lince.

Um lince é um animal selvagem. Terá sido domesticado, será uma espécie de gato em ponto grande, mas é um lince.

E foi esse belo exemplar de animal selvagem que originou uma interessante e rara onda de indignação social e coletiva na Madeira e até fora da Região. Em poucos dias, mais de 20 mil pessoas assinaram a petição pedindo o regresso do animal ao lar onde vivia, alegre e ilegalmente. E assim foi.

Depois, as pessoas

Não é difícil perceber o ato de amor que está por detrás do comportamento destas mais de 20 mil pessoas. São, seguramente, pessoas boas. Gente que se preocupa com os animais, que os quer bem, como deviam ser todos os humanos.

Essa parte é perfeitamente aceitável e compreendida sem dificuldade. É amor.

O que se torna mais difícil compreender é este amor manifestar-se de forma tão intensa no relacionamento entre humanos e animais, quando se sabe que o amor anda tão distante do dia a dia na vida entre humanos.

Afinal, há sentido crítico

Numa terra como a Madeira, capaz de ignorar atrocidades e injustiças, que revela indiferença perante o problema do vizinho de porta, que quase não se manifesta e não ensaia qualquer espécie de critica, esta genuína manifestação social é interessante e demonstra que nem tudo está perdido.

Só falta um bocadinho: falta encarar o nosso semelhante como encaramos os animais. Reside nesse bocadinho o tanto que falta para um justo avanço civilizacional.

E os homens da rua?

Longa e boa vida ao Bores e a todos os outros em dificuldades. Incluindo muitos humanos sem direito a petições, nem manifestações, nem indignações, nem outras complicações.

A propósito: alguém se lembra da última petição pela defesa de um qualquer humano por estas terras? Um sem-abrigo que vive aos caídos? Um toxicodependente morador de rua? Um pobre envergonhado?

Alguém se lembra de uma petição para resgatar um idoso largado num corredor de um hospital porque a família não tem condições para o ter em casa? Ou os velhos que vivem em casa, sós e sem a devida dignidade? E as crianças de ninguém?

Dirão que para esses há apoios de tantas e tantas instituições e que o lince precisava de ser salvo da jaula.

Talvez.

O Bores precisava claramente de ajuda. Não foi ele que se aprisionou. Não foi ele que se domesticou. Nem foi ele que se aburguesou. Em todas essas fases foi vítima de humanos.

Mas a questão não é essa. O foco aqui é o desprendimento e o desinteresse com que olhamos para outros humanos como nós. Não queremos saber se vivem bem ou mal. Se estão aprisionados na sua suposta liberdade ou presos em dívidas e doenças e créditos e vícios e abandono familiar.

Onde é que se assina?

Tal como o Bores, os idosos institucionalizados e conscientes do seu estado não estarão longe do seu habitat?

Não estarão sob stress por viverem num corredor distante da casa que construíram ou pagaram a vida inteira?

Não estarão aprisionados ou mesmo enjaulados?

E alguém assinou uma petição a pedir ao Governo, aos tribunais, às polícias, a quem quer que seja, para os tirar de lá?

Alguém pensou em exigir às entidades públicas meios para que as famílias possam ter ajudas para cuidar dos seus velhos em casa como cuidam dos seus animais?

Parece estranho, mas o exemplo do Bores pode servir para ajudar idosos e crianças de nomes distintos, mas sortes semelhantes.

Num tempo de crescente primazia à vida animal, será oportuno lembrar que tal como os cães, os gatos, os linces, também os velhos e os meninos têm sentimentos.

Onde é que se assina essa petição?

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