A estrada é iluminada por candeeiros mais ou menos de dez em dez metros e a sua sombra vem de trás para a frente à medida que avança, sempre a subir, mas a luz é fraca e amarela, como a luz dos doentes terminais, e depois ele chega ao ponto onde se ergue um enorme jacarandá e ali cheira a mato queimado e o cheiro é adocicado, havendo um pensamento acerca da subida e das luzes do caminho que o acompanha e tem a ver com Deus, D. de Deus, pensa ele, mas o facto é que não acredita em Deus e dali para cima as lâmpadas estão quase todas quebradas, porque os miúdos da zona costumam atirar-lhes pedras para aferir quem tem melhor pontaria – já no seu tempo era assim – e fazem-no a troco de dinheiro, ele bem se lembra disso, sim senhor, lembra-se como se fosse hoje, uma moeda de dois e meio por cada lâmpada, e continua a subir o caminho a pensar em Deus.
Naquele tempo, a vida de D. era muito monótona, sempre a mesma coisa, todos os dias para baixo e para cima de autocarro e, pelo meio, oito horas de serviço entediante no escritório, papéis para cá, papéis para lá, tudo muito importante, tudo absolutamente insignificante, papéis e mais papéis e poucos amigos, poucas falas, sempre a mesma coisa, de manhã para baixo na camioneta das sete e meia, à noite para cima na última viagem e o autocarro parava no largo e ele fazia o resto do percurso até casa a pé.
De manhã, não pensava em nada.
À noite, pensava em tudo.
Era sempre assim...
Parto do princípio que quero gritar por ti quando estiver a morrer, chamar o teu nome, o nome que tantas vezes evitei e nessa hora quero ouvir a tua voz para além do teu nome, quero que me toques e sintas o meu sangue arrefecer, quando eu estiver a morrer, meu amor, quando eu estiver a morrer quero ouvir a tua voz de jardim entardecido, quero amar-te até ao fim da vida e um pouco mais acima avista-se a baía, uma nesga da cidade e a encosta leste salpicada de luzes e ao fundo o mar negro sem horizonte e depois espera por mim no fim da rua, nua, muito nua, espera por mim meu amor.
Era sempre assim...
O verão tinha começado ainda agora, mas o ar estava já demasiado quente, quase insuportável. Só à noite é que se estava bem e por isso as pessoas saíam a passear na cidade e sentavam-se nas esplanadas a beber cerveja gelada, milhares de pessoas abismadas em tão poucas ruas, porque a cidade era pequena, e ele também está ali a passear depois do trabalho, a beber cerveja na esplanada, depois outra esplanada, depois outra, sempre sozinho, sempre a pensar em si e num desejo de água, numa vontade de parar, de começar a andar, de contradizer o andamento, de andar outra vez, até que decide regressar a casa.
Dói-lhe a cabeça.
Agora é uma sombra incompleta, algo deformada e escurecida. Está projetada no para-brisas e só é visível nos cantos menos iluminados da estrada, por ser aí que a luz do interior mais se intensifica. O rosto dele aparece em tons de negro, mais negro ainda na cavidade dos olhos, como se fosse a imagem da morte, enquanto assiste ao esvaziamento progressivo do autocarro através do reflexo no vidro.
O motorista manobra o guiador com destreza e ele vai pensando o meu movimento é a lâmina da guilhotina e o meu amor está fechado dentro de mim para que a violência de Deus o abra e a palavra dos homens o torne obscuro, pois todos os amores são obscuros e invisíveis e violentos como Deus, D. de Deus, pensa ele, mas Deus está fechado no céu e o meu amor está fechado em mim, como se fosse nada, ou talvez como se fosse o caminho que ainda me falta percorrer até chegar a casa.
Era sempre assim...
Desta vez, entre a penúltima e a última paragem, ele é o único passageiro refletido no para-brisas, mas quando o autocarro para e ele se levanta para sair, repara, surpreendido, que logo atrás de si está uma mulher.
Ele sai e ela sai atrás dele...