Irene espreita o relógio de parede por cima da cabeça do professor e, enquanto espera pelo último salto do ponteiro grande, parte para longe. Agora, está à beira do Cinema Águia e a Avenida Eduardo Mondlane apaga-se à sua frente, tão extensa e cheia de gente.
– Dá-me lá dinheiro, tio.
O homem para e fica a olhar para ela.
Irene recua um passo, criando espaço para que ele realize os pensamentos e também para ter campo de fuga se for necessário.
– Pelo menos dá-me um rebuçado, tio.
Ao cabo dum instante, o homem reage:
– Se vieres comigo, levo-te a um lugar onde te dão muito dinheiro.
Estávamos na época do Kapinga, o grande bandido da Zambézia, que batia, roubava e matava ao vivo, fosse quem fosse, diante de quem fosse, sem evidenciar a mínima hesitação. As crianças eram instruídas para não falar nem aceitar nada de desconhecidos, não só porque qualquer desconhecido é sempre um universo de perigos, mas sobretudo porque podia calhar ser o terrível Kapinga, para o qual não havia uma descrição exata, a não ser que tinha olhos flamejantes. As crianças não sabiam o que significava flamejante e, por isso, tinham ainda mais medo.
O homem põe-se a andar e, sem dar por isso, Irene segue-o.
– Você anda sempre assim pela cidade, só com umas calcinhas? – Pergunta o homem com fingida indiferença.
– Nem sempre. Também tenho vestidos – diz Irene espevitada, colocando-se ao lado do homem.
– É por causa do calor que você anda assim?
– Não. Só esqueci pôr o vestido.
O homem esboça um sorriso insidioso:
– Esqueceu pôr o vestido, né?
Não vão muito longe, mas o mundo já é outro.
Entram num prédio negro e sujo. O homem vai à frente, até ao vão da escadaria. Depois, faz um gesto com a mão para que a menina suba primeiro. Ela avança, pensando em rebuçados e bolinhos.
Chegam ao primeiro piso e o corredor está submerso numa luz mortiça que escorre por uma pequena janela com vidros quebrados. O homem bate três vezes numa porta. Um eco sinistro espalha-se pelo corredor. Alguém espreita ao fundo, mas logo se retira. O homem bate mais uma vez, três pancadas secas.
– Mora aqui um senhor que tem muito dinheiro para ti – diz ele. – E também tem refresco e gelados.
Lá dentro, porém, é um reino de silêncio.
– Padre X! – Grita o homem.
E volta a bater e a gritar ainda mais alto:
– Padre X! Padre X!
A agitação quebra o encantamento de Irene e, de repente, o medo agiganta-se dentro de si e ela toma consciência do perigo e sai dali a correr.
Daquela vez, salvou-se.
Tinha seis anos e era uma menina pobre e maltrapilha.
Agora tem 14 anos e é uma rapariga pobre e maltrapilha.
Será possível salvar-se outra vez?
Irene espreita o relógio de parede por cima da cabeça do professor. Lá fora o céu arde. Sombras espalham-se por todo o lado e um derradeiro brilho abate-se sobre as coisas do mundo. Por um segundo, a beleza do lusco-fusco apaga a miséria de sempre dos corpos. É a hora do paraíso na Terra.
O ponteiro dá o salto final e o professor diz aos alunos que podem sair. Irene corre para a porta e vê o rapaz à sua espera no lugar do costume, debaixo da acácia.
– Você me pôs com barriga – diz ela, sem cerimónia.
Subitamente, anoitece e a noite traz o futuro.
O rapaz fugiu. Ela nunca mais o viu, mas a certa altura, dois ou três anos depois, quando o filho já brincava descalço na rua e pedia dinheiro e rebuçados a desconhecidos, soube que tinha morrido, fulminado por um raio durante uma tempestade e, naquele instante, desejou apenas que o raio tivesse sido tão flamejante como os olhos do Kapinga. Nada mais.
Hoje Irene é uma mulher pobre e maltrapilha.
Será que vai salvar-se?