A rapariga está espantada com o voo do francelho. A ave descreve no céu um longo e lento círculo e os olhos da rapariga seguem com atenção esse voo redondo e ela tem a boca aberta e os braços caídos, uma mão livre, outra fechada, ambas paradas e é como se estivesse a voar ao lado do francelho, com os pés bem assentes no poio, percorrendo uma ampla volta à volta do sítio.
O francelho estreita o voo, aperta o círculo e fica a peneirar sobre a casa de pedra onde a rapariga vive sozinha com a avó, três socalcos abaixo, e depois mergulha a pique e passa a rasar a chaminé e vai poisar no galho mais baixo do castanheiro e ajeita as asas e gira o pescoço para um lado e para o outro e deixa-se ficar assim, sereno e altivo no galho mais baixo do castanheiro ao lado da casa.
Ao longe, a rapariga acompanha a manobra do francelho quieta e fascinada, tão quieta e fascinada como se o espírito a tivesse deixado, até que da sua mão comprimida dois dedos se libertam e um fio de grãos de milho amarelo cai sobre a beira da levada, saltando cada grão numa direção diferente e então, sentindo isso, a rapariga deixa de olhar para o francelho e volta a si e continua a executar a tarefa no poio atrás da casa de pedra onde vive sozinha com a avó e a avó está lá em baixo estendida na cama de ferro, em colchão de palha, e os seus olhos estão arregalados e perscrutam as traves negras do teto e por esse olhar esgazeado passam recordações de uma vida infindável e passam também todas as formas de fé que a mantiveram viva até hoje, incluindo a alegria de se empoleirar em cima da casa para a cobrir de restolho naquele tempo e toda a amargura de viver presa num corpo feio e velho, um corpo que foi sempre muito mais feio e mais velho do que o da outra mulher – Maria, assim se chamava a outra –, sofrendo para não ficar sozinha, até ficar, até ter cem anos, cem anos de solidão.
Deus é injusto e não sabe compensar quem ama.
Soerguida na cama, a velha vê a cruz sobre a cómoda e a cruz não lhe fala de Deus, mas do homem com quem dormiu a vida inteira e só agora, na verdade, repara na expressão daquele Cristo de barro e finalmente percebe a sua dor, a sua renúncia e essa imagem traz-lhe de volta o corpo esguio e rijo do marido, o homem que se punha nela cheirando a vinho e a terra e a forçava, violava, espancava – tantas vezes a espancou, o maldito! – e no entanto morreu – o estupor morreu! Porquê? Por causa da outra – Maria, a mulher mais bela que alguma vez viveu naquela serra. A outra. Foi a outra que o matou!
Esta é a história e agora, cem anos depois, ela sente medo e quer gritar e faz um esforço profundo para gritar e levanta o braço nu e ossudo para auxiliar o grito e na extremidade do braço nu e ossudo está uma mão fraca e fria e a sombra dos dedos dessa mão fraca e fria descaídos no vazio do quarto desenham na parede uma imagem fantasmagórica, como a imagem de Cristo na cruz em cima da cómoda.
O grito deve ter força para atravessar o basalto e chegar intacto ao ramo do velho castanheiro onde o marido pôs termo à vida, para que ele oiça o seu desespero bem claro no fundo da morte e aquela corda de nove fios e aquele corpo magro ali pendurado e aquela árvore imponente são as suas últimas lembranças da vida.
Que dia tão claro!
O francelho parte subitamente em novo voo.
– ... aaaa...
O nome da rapariga ecoa de repente e ela estremece, empalidece e depois corre vereda abaixo, contorna a casa, entra pela porta da cozinha e vai ter ao quarto da avó e ela tem a boca aberta e os olhos esbugalhados, os olhos virados para o teto, um braço nu e descarnado fora do cobertor e o corpo não mexe, o corpo não respira, o corpo está frio e a rapariga começa a chorar e o corpo está cada vez mais frio, mais frio, tão frio como o frio da noite que em breve há de chegar para sempre.