Muluko, o Doido, atravessa a praça na diagonal falando sozinho coisas que ninguém entende. A voz some-se aos poucos na distância e o silêncio volta ao lugar. Há uma certa hora da noite em que o tempo para e a vila adquire a magia da existência. A luz dos candeeiros ameiga as sombras e o rumor do mar vem pela rua principal rente ao chão como um fantasma. O vento agita levemente os coqueiros e a quietude brota das pedras e da areia dos caminhos como as almas brotam dos corpos na hora da morte. Quem, por acaso, apanha este instante é possuído pela leveza do absoluto e resvala no abismo da eternidade.
Quando o doutor Dedo Mulloia se achou neste estado, o seu desejo foi não regressar. O contexto, porém, tornava isso impossível. Não tinham decorrido sequer cinco segundos desde que, olhando pela vasta janela do restaurante, fixara o infinito e já Panga Nanne, o dono do hotel, o chamava ao mundo dos fins e finitos com uma série de palmadas nos ombros.
– Então o que acha, doutor? Será doido?
Sempre que Panga Nanne fala dá dois ou três assobios no meio do que diz, como se fossem acentos à toa. Tal prende-se com o facto de ter uma abertura muito saliente entre os dois dentes da frente, no maxilar superior. À medida que dobra a língua, o ar foge-lhe e algumas palavras terminam em assobio, coisa que às vezes dá vontade de rir a quem o ouve.
– No mundo só há doidos e nós somos os mais doidos de todos – diz o doutor, irritado. – Você acha que viver aqui é coisa de gente normal, hã?! Isto para já não falar do que estamos agora a fazer...
– Ora, doutor, você diz isso porque é branco.
– Raios partam essa sua mania das cores! E você diz o contrário porque é preto, é isso? Está a ver como somos doidos varridos!
Panga Nanne rende-se, como sempre, à sabedoria do doutor Dedo Mulloia.
– Posso continuar? – Resmunga o administrador, um mulato enorme chamado Solo Txarepo, que tinha ficado com o caderno aberto à frente da cara, na qual se destacava um olho negro e um grande hematoma na testa. Pasmado, procurava familiarizar-se com a escrita e a caligrafia do texto que estava a ler.
– Espere – adverte o padre Inocêncio Noha. – Dona Beleza ainda não regressou do quarto de banho.
– Você anda sempre cheio de atenções para a Belinha – interrompe, com malícia, o juiz Amândio Agott, a quem pelas costas chamam ‘a Juíza’, devido aos seus trejeitos femininos. Emborca um copo de aguardente e prossegue, cínico e vulgar:
– Cuidado com o pecado da carne, senhor padre! Olhe que Deus vigia mais a si do que a nós, simples pecadores.
De repente, dona Beleza surge na sala e vem enfiada num vestido às flores que lhe empresta uma forma escorregadia de peixe e quando se move parece mesmo um peixe a nadar na corrente. A sala afunda-se num silêncio oceânico para a ver passar, mas subitamente o ar enche-se de uma algazarra animalesca:
“Pecado da carne! Pecado da carne!”
É o papagaio do padre Noha, estridente e inoportuno como sempre. O estupor do papagaio possui o estranho dom de captar as conversas entre as pessoas e o mau hábito de fazer, quando menos se espera, a síntese dos pensamentos em altos berros.
– Cala o raio do papagaio! – Grita exasperado o administrador e, logo de seguida, esclarece a audiência:
– Vou continuar a leitura.
Panga Nanne, o dono do hotel, está à porta, perscrutando os cantos da praça e as distâncias da vila. A noite agora parece-lhe mais escura e a iluminação pública mais fraca e isso aumenta a sua inquietação.
– Fica atento, Joãozinho! – Diz ele ao miúdo que está sentado no último degrau da entrada do hotel. – Assim que vejas o homem ou o cão, dá logo sinal. Presta atenção e não adormeças! Olha que o cão é muito sorrateiro. Pode aparecer de repente e depois não temos tempo para nada.
O miúdo arregala os olhos perante os assobios e abana a cabeça que sim.
Lá dentro, o administrador olha para os cinco elementos da assistência, um a um, como se cada um fosse o princípio e o fim da vida e do mundo e depois molha os lábios com a ponta da língua e recomeça a leitura, dizendo assim:
– ...