Os sonhos são o espelho do ser e esta semana eu sonhei que as paredes da minha casa no Laranjal, a casa dos meus pais, a casa dos mortos, estavam a verter água e as paredes da fazenda também estavam a verter água, bem como as paredes do galinheiro e as paredes da ribeira e estrada lá em baixo e os eucaliptos atrás da casa e as hortas urbanas em frente, tudo em meu redor estava a verter água e eu sabia que ia morrer afogado, eu ia morrer afogado dentro do meu sonho e então comecei a chorar e a chamar por todos os que antes cuidaram de mim – a minha mãe, as minhas tias, o meu pai – mas ninguém me ouvia, ninguém aparecia para me salvar e a água continuava a jorrar torrencialmente das paredes, das árvores, do chão, a água jorrava de todos os ângulos e eu sabia que ia morrer afogado, meu Deus, eu ia morrer afogado na minha propriedade nas zonas altas de Santo António e gritava por socorro, gritava cada vez mais alto o nome da minha mãe, o nome do meu pai, o nome do meu avô, com a água sempre a subir e aquilo era já um oceano negro e fundo sem fim – o meu fim.
Eu ia morrer sozinho. Sim, eu ia morrer sozinho no Laranjal, até que senti alguém tocar-me no ombro. Virei-me e vi a minha tia Conceição, a única do lado do coração que ainda vive, exatamente com o aspeto que tem agora, velhinha de 91 anos, senil e incapaz de reconhecer quem quer que seja – nem eu, nem a minha irmã, nem ela própria – e ela disse-me assim, com o seu ar totalmente alucinado:
– Não chames pelos mortos.
Eu fiquei espantado e ela acrescentou:
– Os mortos nunca mais voltam.
Depois, olhou em redor – os seus olhos já muito vazios de azul, os seus olhos tão cheios de demência – e disse:
– A água não é problema.
E, de repente, a água extinguiu-se e tudo ao meu redor ficou seco – as paredes, a casa, a fazenda –, tudo ficou impecavelmente enxuto e luminoso e o sol mostrou-me o caminho de regresso à realidade, onde cheguei às 03:21 da madrugada e ali fiquei estendido na cama, no quarto de dormir de um terceiro andar, num bloco de apartamentos algures na zona da Ajuda, a pensar que, de facto, os sonhos definem com exatidão o indivíduo pelo seu lado incompleto, impreciso, indeterminado – o seu lado absoluto – e explicam muito bem a existência da cada um à face do universo.
Os sonhos – pensava eu – são a luz do medo e do desejo que tanto nos arremessa e impele para longe como nos amarra e sufoca aqui mesmo. Os sonhos são o chão por onde caminha a consciência do ser humano e todos os seus derivados, incluindo a loucura e a santidade. Os sonhos são a réstia perdida da perfeição que sustenta a nossa vida para o bem e para o mal, porque a hora de Deus é também e sempre a hora do Diabo. Os sonhos são a mais pura mentira sobre nós, toda a nossa verdade.
Raios me partam!
Tenho de escrever isto – pensava eu, quase a adormecer outra vez.
Escrever requer paixão, fé. Escreve-se por amor, apenas por amor. Quando este sentimento falha, ou começa a falhar, como uma lâmpada prestes a fundir numa noite tempestuosa, o espírito apronta-se para a escuridão. Às vezes, o reino das trevas dura para sempre, o que é horrível, porque escrever não tem nada a ver com a solidão, embora pareça que tem.
E eu estava quase, quase a dormir...
Meu Deus, como é bom saber que a Terra é redonda e gira à volta do Sol! Como é bom conhecer umas quantas palavras e conseguir falar com fluência uma qualquer língua, mais não seja para praguejar a existência dos outros e a nossa também! Meu Deus, como é assustador saber que vamos morrer e voltar a ser o que éramos antes de cá chegarmos!
Percebem o que digo? Se não houver paixão para combater este conhecimento, escrever, tal como viver, tal como sonhar, consistirá apenas numa espera pelo fim.