Encontrei um copo em casa do meu falecido pai que ele utilizava para beber vinho e ele só bebia vinho seco. Não gostava do tinto e dizia que era feito com pós de uva. Uma aldrabice lá do continente, dizia ele, e então só bebia vinho seco – americano, canim, jaqué – toda a vida bebeu vinho seco e só desistiu quando o cancro entrou na fase final e eu trouxe o copo dele para casa e agora utilizo-o também para beber vinho.
É um copo de quarto litro à moda antiga, vidro grosso e grosseiro e no dia em que o trouxe para casa, precisamente nesse dia, sonhei com a solidão.
Não sei explicar o sonho, mas sei que sonhei com a solidão e acordei triste e sentei-me na beira da cama às quatro da manhã e fiquei a ouvir o vento na rua e a tristeza dentro de mim e era como se estivesse de facto sozinho no mundo, era como se a Pat não estivesse a dormir ao meu lado, era como se o tempo tivesse parado para me mostrar a profunda, imensa e pungente figura da solidão.
A certa altura, pensei que estava à espera da morte.
Sim, pensei, estou aqui à espera da morte, estou sempre à espera da morte, mas outras coisas vão chegando primeiro e, afinal, é por elas que vivo. Coisas como as que conto nas crónicas, a minha vida do princípio ao fim e do fim ao infinito de mim, tudo o que sou, tudo o que tenho, tudo o que represento, e a seguir pensei no copo de vinho do meu pai e, de repente, estava na tasca à espera que ele se despachasse, mas aquilo haveria de durar um bom bocado.
Eu tinha dezasseis anos e de vez em quando bebia uma Coral pequena enquanto esperava. Era a minha primeira experiência de trabalho a sério, com salário pago à sexta-feira e por isso sexta-feira era o pior dia, porque depois das cinco o pessoal metia-se na tasca e não tinha pressa para sair, o convívio durava até ao anoitecer no meio de gargalhadas, sussurros e desacatos.
Da minha parte, o objetivo era amealhar algum dinheiro durante as férias de verão como servente de pedreiro para depois gastar no decurso do ano letivo e então lá estava eu a criar músculo na construção de uma moradia, algures na Assomada, e logo no primeiro dia fiquei impressionado ao ver e ouvir o meu pai em cima dum andaime a insultar um dos ajudantes com violência e palavrões do piorio, sem dó nem piedade, e aquela foi a primeira vez que o ouvi falar mal – a gente dizia ‘falar mal’ quando se tratava de linguagem obscena – e assim terminou uma das idades da inocência da minha vida, com o meu pai a dizer palavrões em cima dum andaime.
– Não fales mal à frente do pequeno – recomendava a minha mãe, antes de sairmos de casa.
– Não fales mal – dizia ela e todos os dias acordava-me às seis e meia e preparava-nos o almoço e o lanche – arroz com bife e feijão-verde e uma sandes de ovo mexido com chouriço, por exemplo – e depois vinha um carro nos apanhar e pelo caminho recolhia também outros elementos da equipa, de modo que às oito horas em ponto estávamos todos de mangas arregaçadas a virar massa, a carregar blocos, a pregar ripas e chaprões e aquilo ia de segunda a sexta, das oito às cinco, só com uma hora para almoço, e às vezes também havia trabalho aos sábados, biscates aqui e ali, obras de ampliação na nossa casa, ou em casa das tias, ou em casa de algum vizinho a erguer paredes e a deitar lajes num abrir e fechar de olhos na época áurea das construções clandestinas nas zonas altas, de maneira que eu chegava ao fim do dia esgotado e adormecia a ver televisão ainda antes das dez da noite e assim foi durante três ou quatro anos nos meses de verão.
Aprendi muito sobre a vida e uma vez bati com a cabeça num barrote e levaram-me de mota, sem capacete, ao centro de saúde e essa foi a primeira vez que andei de mota e foi uma sensação espetacular que só voltei a sentir muitos anos mais tarde em África. Noutra ocasião enfiei um prego ferrugento de cinco polegadas no pé e deram-me a vacina do tétano e eu fiquei em casa dois dias a pensar que ia morrer, antes de regressar à obra cheio de genica, como agora regressei à solidão no copo de vinho seco do meu pai.