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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

13/10/2024 07:40

“Deus me conserve o juizinho”, dizia amiúde a quem a visitava, numa altura em que era comum não deixar ninguém envelhecer sozinho. Havia mesmo quem tivesse a rotina da visita aos doentes da aldeia nas tardes de domingo. Era uma alegria para quem era visitado, mas também para quem visitava, num ato de despojamento e amor ao próximo. Até a canalha, que não gostava do cheiro a velho e urina que muitas vezes vinha daqueles quartos pouco arejados, onde começava e acabava a casa de quem já não saía da cama, gostava desta rotina. Os pequenos rapidamente arranjavam forma de descarreirar dali para fora a brincar com um neto ou vizinho do doente, não dando oportunidade às queixas ou ao relato dos últimos avanços da doença. “O que faz a mocidade”, ouviam ao de longe, sem perceber bem o conceito.

A senhora Benvinda não. Não sei se era pelo nome, que convidava desde logo a entrar, mas exalava, das suas melenas brancas e cinzentas, o odor da meninice eterna. Nunca cheirava a velho nem a morte. A pele alva e macia, o sorriso de criança e os fetos sempre verdejantes no terreiro, que faziam da sua casa uma espécie de floresta encantada. Surpreendia todos com a agilidade de pensamento, a conversa oportuna e o conselho avisado. “Deus me conserve o juizinho”, dizia apreensiva, como quem pode suportar quase tudo, menos perder o discernimento e aquilo que faz de nós aquilo que somos, mesmo quando tudo o resto se vai. Aceitava a pernas trôpegas, as rugas todas, a dificuldade de transitar, sem ajuda, da cama para cadeira e vice-versa. Os passinhos pequenos e com ajuda do andarilho, os músculos que não respondiam, a comida mais passada e que se comia cada vez mais devagarinho, às vezes com auxílio. Aceitava a despedida lenta deste mundo, enquanto escutava os pequenos a rir lá fora, desde que Nosso Senhor lhe conservasse o juizinho e o que fazia dela pessoa. A dignidade. Consentia a perda de si mesma, mas sempre consciente, numa verdadeira lição de vida e humildade do tempo em que visitava doentes e ninguém envelhecia sozinho. E onde até para a morte era preciso uma comunidade.

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