Eu sou o que escrevo. A frase não é minha, mas eu caibo inteiro nela. Em cada palavra está o meu princípio, a minha história, o meu fim. Ainda agora nasci, vivi, morri e isto aconteceu de todas as formas possíveis. Para o efeito, bastaram 41 palavras, sem contar com as últimas 12, nas quais eu também principiei, perdurei e findei. De modo que, só neste parágrafo, já vão 77 vezes da minha vida completa, concreta, absoluta.
Parece uma brincadeira, mas não é. Estou a falar a sério. Ou melhor, estou a escrever a sério. Eu nasço a cada palavra que o leitor pronuncia e vivo apenas enquanto a leitura dura – uma frase, um parágrafo, a totalidade do texto – para depois morrer na mesma proporção. E isto ocorre de tantas formas quantas o leitor quiser.
Para muitos eu sou um totó, um idiota, um tontinho das zonas altas de Santo António que escreve umas coisinhas no jornal – assim nasci, assim vivo, assim já morri. Para outros talvez seja um poeta, um escritor, um artista – quiçá um poeta sem poema, um escritor sem livro, um artista sem arte e para esses também nasci assim, assim vivo e assim até já morri.
Outros, se calhar, leem-me como homem perdido, nefelibata, porventura drogado, viciado, alcoólico. Alguns encontrarão em cada palavra arrogância, egoísmo, vaidade e outros espinhos do ser bem mais nefastos. Haverá também os que me descobrem amor, sensibilidade, humanidade e outras propriedades bem mais nobres.
Entre os que me soletram, muitos toparão apenas vazio, distância, nada e outras coisas ainda mais ocas, longínquas e imateriais, ao passo que uns quantos seguramente deliram com os meus delírios, as minhas fantasias, as minhas narrativas de expiação, sendo que até agora, neste espaço, já nasci, vivi e morri 295 vezes.
E agora, estando cansado desta conversa fiada, vou contar a história da rapariga que trabalhava numa loja de roupa e que se apaixonou por um rapaz cego.
O cego vivia com o avô numa casinha térrea entalada entre dois edifícios modernos, mas não muito altos. O telhado era feito de telha romana, já muito gasta e repleta de fungos verdes e amarelos. Grande parte do reboco das paredes exteriores tinha caído, deixando à mostra os ossos de pedra da casa. A tinta verde também tinha desaparecido quase por completo da porta e das janelas, uma de cada lado da porta.
Todos os dias o avô contava-lhe coisas do mundo, evocava memórias do passado, lia-lhe as notícias no jornal e apresentava-lhe as previsões para o amanhã dos homens.
Depois, dizia-lhe:
– Acredita e verás.
Entregava-lhe a bengala, abria a porta e despedia-se dele com um beijo na testa.
O rapaz descia três ruas muito movimentadas e ia sentar-se num jardim, debaixo de uma sumaúma, onde ficava todo o dia a pedir esmola.
Um dia, o rapaz decidiu descer a última das três ruas pelo lado direito, ao contrário do que era costume, e foi então que captou o perfume da beleza e o perfume da beleza era tão intenso que o fez parar de repente.
A rapariga estava de pé à porta da loja, porque naquele momento não havia clientes. Ao princípio, pensou que ele era um bandido, mas depois percebeu que era apenas um cego, um pobre rapaz cego, e ficou com muita pena dele e perguntou-lhe se precisava de ajuda.
O rapaz disse que sim, que precisava de vê-la.
A rapariga sorriu e perguntou-lhe se queria que lhe fizesse uma auto-descrição, ao que o cego disse que já estava cansado de ver o mundo com palavras.
– Quero que me abras os olhos para eu te ver – disse o cego.
– Não sei como fazer isso – respondeu a rapariga.
– Acredita e saberás – disse o rapaz e a rapariga começou a sentir-se inquieta, vagamente mal disposta, como se fosse vomitar dali a pouco.
– Não posso acreditar numa coisa dessas, não é possível – disse ela.
– Então – disse o rapaz – serei cego para sempre.
E foi-se embora triste e a rapariga passou o resto do dia a chorar sem saber muito bem porquê e à noite, quando já estava na cama, disse sem querer, em voz alta, quase aos berros:
– Eu amo o cego.