Se o princípio era o verbo, o fim era o vocábulo, pensava cabisbaixo depois de sair do cemitério. E os lábios não chegaram a esgar um sorriso, que os pensamentos lhe causaram por uns segundos. Afinal o amigo, era o último dos seus amigos vivos, passara a vida que se esgotara ali naquele agora que lhe entorpecia a alma, o corpo e os lábios, a estudar e a brincar com as palavras e agora não tinha ninguém com quem partilhar a discussão sobre o que era o fim. Um advérbio de tempo onde já não existe amanhã? Ou um advérbio de modo, sempre para pior? Fosse como fosse era uma hipérbole a solidão que sentia naquele ali e agora, que era o fim do seu amigo e o dele que era o último vivo daquele grupo de miúdos traquinas, que brincara ali, com uma bola de pano, no largo às portas do cemitério, onde entrou para se despedir do seu último amigo vivo, mas também de si mesmo.
Tinha os sapatos sujos da terra fofa, remexida para servir de lençol ao caixão, como quem acomoda a cama do sono eterno ou eterno descanso, como costumam dizer, como se alguém pudesse fazer a mesma coisa para sempre, mesmo que descansar. E começou a pensar como era estranho que nunca tivessem falado disso, das suas mortes, mesmo depois de os irem perdendo um a um. O Fiel, mais cedo que todos de acidente. A primeira vez que perceberam que não seriam eternos. Foi contranatura, juraram que iam ajudar a cuidar do filho pequeno e que assumiriam todos eles o papel de pai, que o rapaz não tinha. E assim foi nos primeiros tempos, mas a pouco e pouco o desconforto foi-se apoderando e as visitas a casa da viúva escasseando. Ela casou outra vez, emigrou, e nunca mais souberam do miúdo, só uns anos depois quando ele apareceu numas férias e os procurou no café da coletividade, queria conhecer os amigos do pai. Conversaram, partilharam memórias e prometeram que este era apenas o primeiro de muitos reencontros, que o Fiel ia gostar, mas nunca mais se viram desde então. E depois disso, passaram os anos e com eles a morte que levou os outros um a um, de causas várias, doença prolongada, doença súbita e de velhice, a palavra que nunca ousaram pronunciar entre eles, que eram só dois e agora um só ou talvez nenhum.
Era estranho nunca terem falado do fim, que andou sempre com eles desde a morte prematura do primeiro a desaparecer, como se caminhassem os dois rumo a uma eternidade que só existia no espaço de silêncio entre eles. Ou nem aí. Por isso quando a filha do seu último amigo vivo lhe perguntou se sabia se o pai preferia ser cremado ou sepultado não soube o que dizer. Disse-lhe apenas que levasse consigo um livro. Qual? Talvez um em branco, respondeu, para espanto da interlocutora. “Pode ser que ele me escreva”, balbuciou e chorou. No princípio era um advérbio. Tudo. E no fim também. Nada.