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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

23/02/2024 08:00

Apareceu um gajo da Câmara Municipal e disse que era para cortar a buganvília, não toda, mas os galhos que descaem para a via pública, ou seja, quase toda. Foi a meio da manhã, na segunda-feira. Eu estava em casa do meu falecido pai, no Laranjal, absorto na solidão das zonas altas, aonde me desloco todos os dias em visita ao Tonecas e às galinhas, quando alguém tocou a campainha – um som que já não ouvia desde a morte do mestre Gabriel, há quatro anos.

Fui ver quem era e o Tonecas acompanhou-me e a sua presença pela escada abaixo, degrau a degrau, trouxe-me à memória os cães da minha vida, todos rafeiros, mais ou menos à razão de um por degrau, a começar pelo Portela, o primeiro de que lembro, um cachorro que o meu pai foi buscar precisamente à Portela e que era espetacular, inteligente e amigo da gente e depois os outros surgiram em catadupa, de forma desordenada, entre os quais o Flup, o Dico, o Pequenino, o mais reles de todos, até me mordeu, o Piloto e a Violeta, um casal exemplar, o Patolas, o Leopoldo, o Dante e a Beatriz, outro casal modelar e lembrei-me também de um, cujo nome esqueci, que nasceu louco e morreu afogado num poço de rega, pois um dia fugiu de casa e foi pela levada adiante sem olhar para trás e como a água do poço estava coberta de lodo ele deve ter pensado que era chão seguro e deu-se a tragédia.

– É uma sensibilização – disse o homem da Câmara Municipal.

Tinha já tirado umas fotografias à buganvília e explicou-me que andava a sensibilizar os moradores para o problema da vegetação que pende para a via pública.

– É preciso cortar, aparar – disse ele, amigavelmente.

Eu olhei para a buganvília, toda espigada, com a sua enorme beleza lilás a tombar para a Estrada Comandante Camacho de Freitas e, não sei porquê, pensei que há uma linha de solidão que atravessa todas as idades da minha vida, como se cada idade tivesse sido outra vida – eu menino, eu adolescente, eu jovem, eu homem adulto, eu em cada um dos meus amores, eu na ilha, eu em África, eu agora defronte da buganvília.

Em cada vida há um fio perene de solidão, pensei, como se cada vida fosse um galho da buganvília condenado ao abate. Não sei explicar porquê, mas é o que sinto. Talvez seja uma forma exagerada de afirmar a minha presença no mundo. Ou, se calhar, é puro egoísmo, pura vaidade. Ou, pior ainda, puro cinismo. Não sei. Sou eu, pronto.

– Sim, sim, já está na minha agenda proceder ao corte – disse e depois olhei para o fundo da estrada e lembrei-me da vez em que saltei da camioneta em andamento, quando vinha da escola. Eu via os outros miúdos fazer aquilo com uma facilidade incrível, pouco antes do carro parar, quando circulava já com a porta aberta, o que era comum naquele tempo, e quis fazer o mesmo. Mal pus o pé no chão, descontrolei-me e ganhei uma embalagem do estupor, de modo que não consegui travar e mergulhei num poio à beira da paragem, deixando toda a gente a rir.

– E quando pensa ter o trabalho concluído? – Perguntou o homem da Câmara Municipal.

– Até ao final da semana – respondi.

– Então vou passar por cá na próxima semana para ver como ficou – disse ele.

Apesar do tom cortês, havia qualquer coisa de ameaça subjacente na sua conversa e isso fez-me pensar que, na verdade, eu permaneço igual ao que sempre fui. Sim, pensava enquanto subia as escadas na companhia do Tonecas, ele à frente a abanar o rabo, eu atrás em crise existencial, sou igual em todas as vidas e todas as vidas dizem o mesmo de mim. Por exemplo, isto:

Duarte Caires nasceu nas zonas altas do Funchal, ilha da Madeira, em 1967, no dia de São Martinho. Exerce a profissão de jornalista desde o final da década de 80 do século XX. Assina uma crónica semanal no JM desde 2015, intitulada “Do Fim ao Infinito”. Viveu em Moçambique entre 2008 e 2013, ano em que regressou à Madeira. Continua vivo e sonha em voz alta.

Sim, continuo vivo e sonho em voz alta e agora preparo-me para cortar uma buganvília a mando da Câmara Municipal, incumbência que misteriosamente me fez pensar na solidão das minhas vidas passadas, como se fosse possível alguém ter mais do que uma à face da Terra.

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