Eu tenho em casa, nas zonas altas, um galo cambado e devia matá-lo por isso, por estar cambado, mas não sou capaz. Nunca fui capaz de matar um animal doméstico e em pequeno fugia para não assistir à cena final – a pena capital – quando o meu pai ou as minhas tias decidiam sacrificar uma galinha ou um coelho em dia de festa, isto para já não falar do porco, cuja gritaria na hora da morte ainda hoje me atormenta em sonhos, sobretudo na época de Natal.
Pior ainda era quando decidiam desfazer-se das ninhadas de cachorros ou gatos, tão pequeninos, praticamente sem pelo e com os olhos fechados e chamavam um homem da fazenda, um tipo forte e bruto, para dar cabo deles, enterrá-los vivos ou atirá-los para dentro dum poço ou para o fundo da ribeira e aquilo era horrível, era um pesadelo sem fim, embora a minha mãe e as minhas tias me contassem sempre uma história amena e tranquila, quase mágica, para justificar o desaparecimento súbito dos bichos e eu tentava acreditar, eu lutava com toda a força para acreditar, mas a certa altura, antes de completar dez anos, descobri a verdade, porque um dia estava a brincar na ribeira e encontrei uma saca de serapilheira a boiar cheia de cachorrinhos mortos, cinco ou seis, e ainda hoje me parece que um deles estava vivo, sim, ainda hoje os demónios da memória me dizem que um deles estava vivo e eu tinha a obrigação de salvá-lo, mas a saca seguiu viagem pela ribeira abaixo.
Contudo, não fiquei traumatizado.
Naquele tempo, era assim...
Gosto muito de cães e de gatos e no que toca aos outros – galinhas, coelhos, porcos e afins – sempre os tratei bem e bem os aprecio no prato, preparados de várias maneiras, e também sei que em caso de extrema necessidade mataria sem remorsos qualquer um deles – o porco, o coelho, a galinha – para me salvar e manter vivo, se tivesse de ser, como em África, quando lá vivi, mas assim, em contexto aburguesado, de barriga cheia e espírito afetado, assim a transbordar de poesia e vaidade e pancadas existencialistas sou incapaz de matar o que quer que seja, muito menos o galo cambado.
É um galo bonito, de penas pretas no rabo e ruivas nas asas, penas lustrosas e crista encarnada imponente, olhar vítreo centelhante e já tem pelo menos seis anos, o que me parece uma longa idade para galináceo.
Quando o meu pai morreu, em 2020, a população do galinheiro era composta por três galos ruivos, nove galinhas multicolores, um palheiro pedrês, uma palheira preta e três rolas, mas agora sobram apenas dois galos, duas galinhas e a palheira. O resto morreu de morte natural e gradual, digamos assim. Num dia o bicho estava bem, no outro estava emantado e no seguinte estava morto. Já as rolas tiveram um fim bem mais trágico, pois foram devoradas por ratos.
Um dos galos sempre foi fugidio e assustadiço, mas o outro é sociável. Ao princípio, quando comecei a tomar conta do galinheiro, ele tinha medo de mim, mas depois foi-se aproximando e por fim permitiu que lhe tocasse. Ficámos amigos, eu e o galo, e então senti-me triste quando o vi cambado há coisa de duas semanas.
Nos primeiros dias de cambado, o galo ainda era capaz de saltar para o poleiro, mas agora já não executa a manobra e passa o tempo no chão, ajoujado, e eu tenho de lhe pôr o milho e as couves à beira do bico. Come com apetite e canta estridentemente como sempre. Não sei que diabo se passa com as patas dele, mas deve ser coisa da idade, doença de velho.
O bicho não se arrasta, é o que é, e eu devia matá-lo e preparar um guisado à maneira, com especiarias da venda do Bento e outras que tais, em vez de cuidar dele e preocupar-me com o seu bem-estar. Mas acontece que o estupor entrou na equação que assinala o sentido da minha vida e agora não há nada a fazer. Afinal, o Reino de Deus, como todos sabem, está dentro do indivíduo e ao seu redor. Ou seja, não matarei o galo.