Com as últimas experiências profissionais pude contactar de forma mais clara com um campo da psiquiatria que utilizamos mais para culpar a causa das doenças mentais do que para as compreender. O trauma. O trauma pode ser entendido de muitas formas, mas trata-se de um acontecimento violento para o indivíduo e que interfere com a sua resiliência, com a sua capacidade adaptativa, impedindo muitas vezes de poder desenvolver as respostas saudáveis ao mesmo.
O livro “O corpo não esquece” é uma obra muito interessante para a compreensão das consequências do trauma na saúde mental, mas também na saúde em geral. A forma detalhada como o autor, psiquiatra e investigador, introduz o desenvolvimento da ciência nesta área ao longo da sua carreira, é inspirador e muito informativo.
A situação traumática cria, apenas por si, alterações fisiológicas fulcrais que podem determinar a manutenção de sintomas psiquiátricos e consequências fisiológicas por toda a vida. Alterações hormonais e do sistema imunitário são as mais claras, mas por efeitos indiretos destas, formam-se consequências por todos os nossos órgãos e sistemas.
Esta devia ser uma área mais falada e intervencionada, porque a sua prevenção primária e secundária, poderia alterar de forma significativa o futuro da saúde mental. Na maior parte das doenças consideramos atualmente as situações traumáticas como precipitantes, mas raramente como fatores de manutenção. O problema, ao contrário do que as pessoas gostam de acreditar, é que os medicamentos não mudam as personalidades, nem fazem as pessoas esquecer as suas histórias. Por isso, os medicamentos ajudam a atenuar os sintomas do trauma, mas não o resolvem.
A investigação atual procura abordagens não farmacológicas eficazes, mas existe um reaparecimento das investigações com psicadélicos, que têm mostrado alguma eficácia, por mexerem em zonas do nosso inconsciente que ou não conseguimos, ou não estamos capacitados para o fazer. A eficácia destas drogas é uma direta medida da importância de conseguirmos chegar ao nosso inconsciente para desbloquearmos o passado, mas apenas quando estamos capazes de o fazer. Procurar o passado sem preparação, ou bom acompanhamento, pode causar sintomas psiquiátricos graves que necessitam de apoio para se ultrapassar. Se o passado está esquecido, normalmente é como proteção para podermos caminhar e sobreviver. Mas parte de nós fica bloqueada e limitada. Parte da experiência humana completa fica impedida de ser vivida. Quando estamos fortes ou não conseguimos recuperar dos nossos sintomas, pode ser altura de procurarmos ajuda competente neste tema, mas deve ser sempre com profissionais de saúde capacitados.
Volto a salientar que a experiência de ir ao inconsciente e recuperar a nossa história traumática pode ser causadora de muitos sintomas e agravamentos, mas depois de ultrapassados, a pessoa pode conhecer uma liberdade e uma profunda realização da sua vida e inclusive, recuperar saúde física. Nunca é demais dizer que o nosso cérebro e o nosso corpo são um só. O que sentimos tem impacto no resto do corpo, tal como o que o resto do corpo sente tem impacto no cérebro. É uma fusão de experiências e sensações que permitem esta experiência única de ser humano.
Não será o trauma a ferramenta mais importante para nos mostrar a profundidade da humanidade? Sobreviver é fácil, mas precisamos de dedicar-nos à recuperação das pessoas que passam por estas experiências, não só pela sua saúde e bem-estar, como pelo impacto que podem ter em transformar a restante sociedade.