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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

15/03/2024 04:00

Era ainda noite cerrada quando se fizeram ao caminho, mãe e filho, avançando com passos rápidos, encolhidos e torcendo os pés sobre as pedras irregulares da vereda, tentando aquecer o corpo com esse andar acelerado. O miúdo lutava por agarrar as imagens de um sonho agitado, ainda vivo dentro de si, enquanto dava corridinhas para acompanhar a passada da mãe e ela, metida em delírios silenciosos, esforçava-se por travar as lágrimas expondo o rosto ao frio intenso da madrugada.

Enquanto subiam a vereda, Maria descia às funduras da sua vida, como se fizesse o trajeto de uma pedra na água e ouvia com precisão as lanchas a rolar sobre o calhau e também ouvia o som dos remos que conduziam os homens até ao grande navio, fundeado ao largo, e a cor desse dia já tão distante, tão consumido pelos anos, era cinzenta e a cor de todas as coisas desse dia também era cinzenta e o mar plúmbeo evocava a eternidade das grandes tristezas alojadas no coração dos homens.

A multidão permanecia à babujinha calada, estática, expectante, mas, à medida que as lanchas se afastavam, tornou-se chorosa e pouco a pouco encheu a praia de lamúrias. Por fim, algumas pessoas perderam as estribeiras e começaram a gritar:

– Manuel!

– João!

– António!

Uma velha avançou pelo mar adentro, alucinada:

– Meu filho! Ai meu filho!

Muitas mulheres, algumas com bebés ao colo, outras segurando pela mão meninas pesarosas ou rapazitos soturnos, caíram de joelhos sobre as pedras roliças, vencidas pelo desgosto de verem os maridos partir, roídas pela irremediável incerteza do seu regresso.

Maria era uma das que tinha ao colo um recém-nascido e também ela não se conteve e berrou o nome do seu homem.

Sentado na lancha, com a espingarda Mauser entre as pernas, Augusto mantinha-se atento ao murmúrio vindo da praia e procurava a voz da mulher entre todas as que se levantavam e estando já longe, muito longe, quando as pessoas perderam as feições e se transformaram numa mancha uniforme, informe, apanhou-a, clara e nítida, a voz da sua querida mulher, e guardou-a na alma para sempre. Depois, a bordo do grande navio, viu a sua terra afastar-se devagar e fixou a baía, a cidade a subir a encosta, a serra ensombrada pela caligem.

– Nunca mais cá voltaremos – disse-lhe um camarada. – Vamos morrer todos – dizia ele. – Sinto isso cá dentro. – E batia com a mão no peito. – É o fim. Desta a gente não se safa.

Augusto olhou-o nervoso e pensou na mulher e no filho e sentiu o mesmo.

– Nunca mais os vejo – disse para dentro e por dentro chorou.

No alto da vereda, Maria agachou-se diante do filho, ajeitou-lhe a camisa e o cabelo, sorriu a custo e disse:

– Anda, vai para a escola.

O miúdo pôs-se a andar cabisbaixo contra o frio da madrugada.

– Vai depressa! – Disse a mãe e ele apertou o passo, sem nunca olhar para trás, até que desapareceu numa curva.

Então, Maria chorou. O calvário da doença adensava-se de dia para dia, lançando um horrível manto de opacidade sobre a sua vida. A morte rondava a crista da serra e estava prestes a descer, imponente e imperdoável, e o sono de Maria agitava-se e os seus sonhos enchiam-se de males e demónios e todas as noites ela acordava sobressaltava, esmagada.

– O meu filho vai ficar sozinho no mundo.

– Vamos ter confiança nos ares da serra – disse-lhe o médico, mas franziu o nariz e depois acrescentou:

– Vamos acreditar em Deus. Vamos ter fé.

Maria tinha por certo que sempre que um homem fala em Deus é porque perdeu a esperança e, para não ser consumida pela incerteza dos dias por vir, mostrou-se determinada:

– Vou morrer, senhor doutor?

– Todos vamos morrer, mas é preciso ter fé na ciência – disse ele e depois, sem querer, reforçou:

– É preciso ter fé em Deus.

– Quanto tempo me falta? – Perguntou Maria, ainda com mais firmeza.

O médico resignou-se:

– Não sei.

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas.

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