Enquanto o País mete férias a fundo, a Madeira assiste a um raro levantamento de cidadania ativa e popular.
O primeiro momento foi protagonizado pelo lince selvagem, que era meigo e gerou a ira do povo quando foi apreendido. E ainda mais danados ficaram os cidadãos quando souberam que o bicho estava numa jaula, triste e deprimido.
Mas o caso tomou proporções justamente mais sérias quando Bores morreu, sete dias depois de ter sido provisoriamente devolvido à família que o tinha domesticado.
Tudo isso deu que falar durante dias e quase toda a gente teve opinião. Quase toda a gente menos o provedor do Animal, que tinha de ser o primeiro a falar sobre o caso. Mas não. O provedor achou que não era com ele e ficou no seu canto, à espera.
Esteve em silêncio durante mais de 30 dias. Quando o Jornal lhe telefonou, esta semana (e o Jornal também o fez de forma tardia), disse que não podia ter feito muito mais porque o caso estava nas mãos do Ministério Público.
Mas, agora que o Bores morreu, o provedor não está para brincadeiras. Agiganta-se e exige saber o que aconteceu nos últimos 30 dias. Agora é que vai ser!
Mas, agora, é tarde demais.
Numa coisa tem o provedor razão: este caso está muito mal explicado.
Um animal selvagem foi introduzido na ilha sem ninguém perceber e cá viveu durante seis anos no mais completo anonimato;
Veterinários cuidaram do lince Bores como se fosse o gato Riscas ou a gata Mia;
O Ministério Público assumiu o caso sem a menor sensibilidade e, diz o provedor, sem competência;
A GNR apreendeu o lince como se fosse um leão à solta. Dizem que o sedaram para o levar e o sedaram para o devolver.
E sabe-se agora que a Madeira tem outros animais enjaulados à sua guarda.
Em tudo isto, o provedor tem razão para agir, mesmo que o faça só agora.
Mas, agora, é tarde demais.
Andava o povo já na luta antes de enlutado e cai na arena outro tema fraturante: o futuro ex-parque de estacionamento na Praça do Município era um caso praticamente esquecido por quase todos. Quase todos menos os que cutucaram o vespeiro adormecido e foi o que foi.
Alguém tirou da cartola das petições públicas uma petição para salvar a Praça do Município.
Os partidos da oposição saltaram em cima do caso com a mesma vontade com que defenderam o lince.
E ainda mais estranho: o partido da maioria uniu-se contra uma proposta que foi bandeira da coligação que integrou. Mais do que estranho, parece um sinal para cortar rente, agora, qualquer ideia de proximidade à proposta original que ajudou a defender.
Mas, agora, é tarde demais.
De repente, já quase ninguém quer o parque de estacionamento subterrâneo. Quase ninguém menos o pároco da Sé, que devia ter mantido o seu habitual distanciamento das coisas terrenas.
Mas não. O cónego entrou na dança dos palpites e também deu o seu. Com todo o direito, disse que era uma excelente ideia trazer mais gente para o centro da cidade para ir à missa, às compras e ao cafezinho.
O comentário, assinado individualmente, mas partilhado nas redes sociais com o perfil da Sé, foi duramente criticado e tenta, agora, passar à condição de esquecido.
Mas, agora, é tarde demais.
Nem tudo é mau. Este tempo feito de corajosas manifestações públicas de pensamentos privados mostra que a sociedade está atenta. Que muitos até podem estar errados, mas não deixam de dizer o que sentem.
Ora, isso é a cidadania a funcionar. Este levantamento a que temos assistido, tem uma matriz claramente popular. É moderado e regrado. Tem uma génese espontânea, livre dos diretórios partidários.
É claro que os partidos, que durante décadas funcionaram como guardiões da cidadania, vão tentar fazer o que quase sempre fizeram: chamar a si as venturas do povo. É quase compreensível que o façam, mesmo a partir de agora.
Mas, agora, é tarde demais.
O povo dá sinais de um lento despertar.