O frade dominicano chegou convidado pelo senhor da cidade, um prestamista dedicado a Reis e Príncipes, um tipo imperial, cognominado como o Magnífico. A alcunha revelava poder, visão e grandiosidade, talvez curtas para tão nobre personalidade. A cidade, essa, crescia imponente e livre, e era um centro dedicado a artistas patrocinados pelo Magnífico. Para o frade, tudo aquilo era estranho, porventura ininteligível, seguramente decadente. A cidade era, sim, um antro de imoralidade, um covil de ímpios e incréus a precisar de uma libertação impiedosa, de uma lavagem salvífica. Ela, a cidade, e a Igreja dela, corrupta, demoníaca, culpada de incesto e de simonia e de outros crimes inomináveis. O frade não se fez rogado e agarrado à promessa e aos seus próprios auspícios encarregou-se de começar a espalhar o veneno da redenção e as virtudes da purificação.
Entretanto, o Magnífico morreu e com ele se foi uma certa vaidade e esperança. Pior ficou com a ameaça de um rei estrangeiro aos territórios, que acelerou a expulsão da família do antigo senhor e facilitou a ascensão à liderança do frade. A oportunidade foi ouro.
O frade continuou com o seu combate à imoralidade, ao pecado e à vida devassa dos cidadãos e da Igreja que, para ele, persiste no erro e nas mordomias pecaminosas. O frade conseguia assim transformar a cidade numa república popular influenciada pelos seus próprios pensamentos. Durante 4 anos, dedica-se à regeneração dos pecadores e das suas almas e incinera, na fogueira, milhares de tesouros que engrandeciam a cidade do Magnífico. O fanatismo é apoiado por milhares que aplaudem a catarse de destruição. Mas não se atinge o topo sem criar inimigos poderosos. E o frade, um cúmplice do rei estrangeiro, torna-se inimigo dos senhores de outras cidades e do todo-poderoso da Igreja, que não lhe reconhece legitimidade. Não lhe perdoam a audácia. Estava condenado.
Perante o dilema, o frade faz uma opção: não pede perdão, corre para a frente, não reconhece a autoridade superior. Amplia, pelo caminho, a limpeza moral e o salvamento das almas. Não há regra ou limite. Diz o que lhe apetece. E acusa, e julga, e executa. As multidões rejubilam com a purificação dos pecadores. E nas fogueiras não ardem apenas arte profana e livros incompreensíveis, ardem ainda culpados e inocentes, sem vestígio de remorso. Perante a desfaçatez e o descontrolo, o todo-poderoso chefe da Igreja excomunga-o. O feitiço virava-se contra o feiticeiro. Tenta resistir, mas a queda de uns, é a ascensão de outros. A partir daí, o frade perde influência, falha a ordália e é morto ironicamente na fogueira. Chegava ao fim a aventura da república popular. A família do Magnífico regressa ao comando dos destinos da cidade.
O frade desta história é Girolamo Savonarola. O senhor da cidade é Lourenço de Médicis ou Lourenço, o Magnífico. A cidade do texto é a Florença da década de 1490. O rei estrangeiro é Carlos VIII de França. Os senhores das outras cidades são outros príncipes italianos. E o todo-poderoso da Igreja é o Papa Alexandre VI, também conhecido por Rodrigo Bórgia.
Savonarola não foi o primeiro revolucionário consumido pelo fogo da própria heresia. Nem o último. No cemitério do mundo, onde as almas vagueiam em memórias recônditas, moram as campas dos iluminados que nunca se cansaram de tentar ensinar aos homens a via das melhores das virtudes, o da sonegação do “pecado”, o caminho da luz. Acabaram iguais aos que condenaram ou aos que quiseram educar – carbonizados pelo combustível que os próprios atearam; fuzilados ao som das carabinas e metralhadoras; sem a cabeça, por via da guilhotina ou do machado.
Hoje, o contexto é diferente, mas igualmente perigoso. O novo frade não queima vidas na fogueira, mas joga na lama nomes e reputações. Para ele há que exultar o mediático e explorar o casinho, eliminar a complexidade, promover a simplificação. Seja sobre a vida, a economia, a sociedade, a política, o que seja, o mundo é simples e divisível em bons e maus, inocentes e culpados, polícias e ladrões, santos e pecadores. Na sua arrogância e soberba moral, o novo frade é a personificação do populismo justicialista que quer implodir a confiança nas instituições, prender quem o atrapalha sem acusação ou julgamento, enquanto circunda na feira a prometer mais barato, a atacar quem produz riqueza, a invejar quem tem e investe. Mas sem se aperceber, o populista é igual ao Savonarola do fim do século XV, e também cava a sua sepultura. É a Húbris a crescer sem freio, à espera do golpe da sua Némesis, essa deusa – cristalina, rigorosa e cruel – da vingança, que pode tardar, mas que nunca falha.