Está uma cobra debaixo da cama, pensava eu todas as noites e, na hora de me deitar, lutava com toda a força contra a tentação de espreitar e vencia sempre a contenda, todas as noites, mas depois acordava sobressaltado e a primeira coisa que fazia era pegar na lanterna e tirar o medo a limpo.
Nunca encontrei cobras debaixo da cama, nem enroladas nos lençóis, nem escondidas atrás dos móveis, mas ouvi muitas histórias desse teor e o final era quase sempre trágico. Um dia, deparei-me com uma enroscada na janela, mas era pequena e mansa, sem veneno. Mesmo que me picasse, não acontecia nada.
Seja como for, o certo é que naquele tempo eu vivia na Alta Zambézia, numa cidadezinha no sopé dos montes Namúli, e a minha palhota, que era feita de tijolo grosseiro e telhado de zinco, apresentava frinchas e aberturas por todos os lados e situava-se num bairro entre arvoredo e matagal e veredas de terra batida, pelo que a possibilidade de uma cobra venenosa entrar à procura de calor e abrigo era real, enorme, diária.
Então, na hora de ir dormir, eu pensava assim:
Está uma cobra debaixo da cama.
O pensamento trazia-me de volta os medos de menino e eu via-me outra vez em casa do avô, na Rampa, em Santo António, estendido na cama que fora dele antes de morrer, o meu querido avô, numa época em que a casa ainda não tinha instalação elétrica e as minhas tias circulavam à luz de velas e candeeiros a petróleo, às vezes também de olho-de-boi, e eu ali no escuro, deitado num colchão duro feito de palha de milho, a pensar em fantasmas e almas penadas, atento aos ruídos do exterior, onde o Diabo arrastava os pés; atento à correria e aos guinchos dos ratos no vão entre o soalho e o chão do mundo, como se fossem ladrões prestes a entrar; atento ao movimento das sombras dentro de mim e ao meu respirar no vazio do quarto, quase quase a chorar, quase quase a gritar por socorro, até ser vencido pela exaustão, até cair no sono profundo.
E se, por acaso, acordasse no meio da noite, chamava logo pela minha tia Teresa, para acabar de vez com o medo, exatamente como fazia em África, ao espreitar expectante o vácuo debaixo da cama.
Era uma coisa de certa forma romântica e com sabor a aventura – eu acordado na madrugada austral, numa casinha desengonçada algures no interior de Moçambique, perdido, assustado, debruçado de lanterna em punho a ver se havia serpentes debaixo da cama, sempre na esperança de ali encontrar apenas Deus – ai meu Deus! – ali e em toda a parte.
Agora, tantos anos depois de África, tantos anos depois da infância, tantos anos depois de mim aqui na Terra, agora, mais do que nunca, vejo que a vida é todos os dias isto – o princípio da inquietação, o princípio da perturbação, o princípio do medo.
De facto, eu sou tudo o que me atormenta na relação com o mundo e os outros, tudo o que me despista e espanta, tudo o que me horroriza e desencanta, eu sou tudo o que me desperta no meio da noite, aqui e em qualquer lugar, e me faz dizer:
– Este é o tempo da minha vida.
E me faz dizer:
– Estou vivo para assistir a estas coisas.
Sim, meus amigos, estou vivo para assistir a estas coisas, seja lá o que for, e tudo é real, enorme, diário como o perigo de uma cobra debaixo da cama no meio de África, ou como uma bruxa má rondando a casa do meu avô numa noite escura da minha meninice, ou como esta força bruta e inexplicável que me arrasta constantemente para as margens da solidão mesmo quando estou entre a multidão.
Mas, por outro lado, é também com base nesta condição existencial que eu procuro todos os dias sem descanso, para me salvar, a poesia de todas as coisas, a poesia em todas as coisas, a poesia do nada, em nada, a poesia do homem que sou...