Não é possível precisar o ano em que o aparecimento dos primeiros romeiros teve lugar, naquele local. Tão pouco estabelecer a data exacta em que se iniciaram as romagens à igreja, inicialmente capela, do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, construída junto a um penedo, à beira-mar, salpicada pela força das ondas, sempre que o oceano embravecia, com a chegada das marés-altas.
O passar dos anos e dos Setembros que os acompanharam, foram marcando, ao longo dos séculos, as mudanças que ocorriam no arraial: fosse a quantidade de pessoas que chegava e as noites que pernoitavam no local; fosse o observar das oferendas que traziam a fim de serem oferecidas ao Senhor Bom Jesus; fossem os ornatos e enfeites que assinalavam a data, embelezando a igreja e seus logradouros, a que acrescia o transporte utilizado para vencer o percurso de suas casas até àquela pitoresca aldeia, estabelecendo, simultaneamente, a evolução, porque a mudança imposta pelo correr do tempo é evolução, ditada pelo lento mas progressivo evoluir da sociedade, consequência da continua acção do homem na incessante busca de melhores condições para enfrentar a vida, para ir sobrevivendo, procurando moldar a natureza aos seus desígnios.
Recorrendo sempre aos caminhos do reino e às veredas e trilhos existentes, aventuravam-se os romeiros dia e noite, pelos vales e pelas montanhas da ilha, subindo e descendo, galgando encostas, lombadas e fajãs até alcançarem aquela nortenha nesga de terra, debruçada sobre o mar que, numa zona já distante das fragas da serra da Muranha, acolhia a igreja do Senhor Bom Jesus.
Desde muito cedo, a partir dos séculos XVI ou XVII, que surgiram os barcos de cabotagem, criando deste modo alternativa ao trajecto pedonal. Porém, a maioria das pessoas escolhiam o caminhar, reunindo-se, para o efeito, em pequenos grupos, organizados, que se punham a caminho, por vezes saindo três ou mais dias antes do Domingo do Senhor Bom Jesus, transportando, em mão, às costas, ou com recurso a algum quadrupede, a panóplia de utensílios necessários à sua alimentação e subsistência durante os dias de romagem.
A este propósito reproduzimos duas pequenas publicações datadas de 1877 e de 1881, relatando comportamentos indesejáveis de romeiros e o transporte marítimo para o Arraial de Ponta Delgada.
Nos primeiros séculos que puderam assistir ao realizar do arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada, as alterações que as gerações que foram sucumbindo ao longo do tempo, procuraram introduzir, não possuíam expressão a justificar serem diferentes. Mais ou menos gente, melhores ou piores condições atmosféricas, o tocar rajão, concertina, guitarra ou outro instrumento musical para acompanhar os cantares e o despique dos grupos que apareciam, constituíam situações sempre semelhantes, com poucas ou nenhumas alterações.
Nesses tempos, depois do Sol pôr, a escuridão das noites apenas era perturbada pela luz das chamas dos archotes ou pelas fogueiras que ajudavam a preparar as refeições, enquanto nas gargantas dos romeiros corria a água ou o vinho ou a aguardente que bebiam para ajudar a comida e apadrinhar o espírito de festa.
Por todo o mundo, o século XX foi um século de mudança. Na ilha da Madeira, também. Primeiro o aparecimento da energia eléctrica. Depois do telefone, das estradas, dos automóveis, das camionetas, das telefonias. As distâncias entre povoações, que eram grandes face à dificuldade dos percursos existentes, foram-se encurtando com a abertura de estradas pavimentadas, levando a que horas ou dias de penoso caminhar se transformassem em curtas deslocações, com cómodas viagens, utilizando o transporte rodoviário.
Tudo acabou por se ir transformando e, nos dias que correm, o religioso, para muitas pessoas, acaba por ser ultrapassado pelos espectáculos musicais e pelo muito comércio que se procura impor nos dias e noites do arraial, atraindo o espírito consumista, dominando atenções e desempenhos, esquecendo que a data existe porque existe a fé e a religião católica, desse longínquo dia em que um bocado de madeira com uma imagem de Jesus Cristo foi encontrada, deixada pelo mar, algures sobre as pedras do calhau que se estendia do rochedo onde hoje está a igreja, até à ciclópica muralha basáltica de tons castanho-avermelhados, vertical, que sustenta o pequeno planalto, lá no cimo, longe das vistas e do oceano, espaço onde ficam a Roça e a Levada de Cima, dando origem ao culto do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada.
Após o interregno de dois anos, causado pela pandemia que ainda grassa por todos os continentes, regressa, neste Setembro de 2022, o maior e mais antigo arraial da Madeira!
Deverá continuar alheio a grandes mudanças, a transformações que lhe retirem a alma, que sempre alimentou o seu carácter secular, religioso e de elevação da fé, nos cristãos católicos, âmago da sua existência e elemento catalisador de um povo crente e com temor a Deus, participando nas liturgias da igreja, materialização do além, desse mundo espiritual, de uma outra dimensão, eterna morada do homem. Só assim, poder-se-á continuar a mostrar e a manter a diferença, consagrando a tradição do mesmo modo que consagra a fé de quantos acreditam em Deus e no Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada.