Tinha os sapatos sujos da terra fofa, remexida para servir de lençol ao caixão, como quem acomoda a cama do sono eterno ou eterno descanso, como costumam dizer, como se alguém pudesse fazer a mesma coisa para sempre, mesmo que descansar. E começou a pensar como era estranho que nunca tivessem falado disso, das suas mortes, mesmo depois de os irem perdendo um a um. O Fiel, mais cedo que todos de acidente. A primeira vez que perceberam que não seriam eternos. Foi contranatura, juraram que iam ajudar a cuidar do filho pequeno e que assumiriam todos eles o papel de pai, que o rapaz não tinha. E assim foi nos primeiros tempos, mas a pouco e pouco o desconforto foi-se apoderando e as visitas a casa da viúva escasseando. Ela casou outra vez, emigrou, e nunca mais souberam do miúdo, só uns anos depois quando ele apareceu numas férias e os procurou no café da coletividade, queria conhecer os amigos do pai. Conversaram, partilharam memórias e prometeram que este era apenas o primeiro de muitos reencontros, que o Fiel ia gostar, mas nunca mais se viram desde então. E depois disso, passaram os anos e com eles a morte que levou os outros um a um, de causas várias, doença prolongada, doença súbita e de velhice, a palavra que nunca ousaram pronunciar entre eles, que eram só dois e agora um só ou talvez nenhum.
Era estranho nunca terem falado do fim, que andou sempre com eles desde a morte prematura do primeiro a desaparecer, Como se caminhassem os dois rumo a uma eternidade que só existia no espaço de silêncio entre eles. Ou nem aí. Por isso quando a filha do seu último amigo vivo lhe perguntou se sabia se o pai preferia ser cremado ou sepultado não soube o que dizer. Disse-lhe apenas que levasse consigo um livro. Qual? Talvez um em branco, respondeu, para espanto da interlocutora. "Pode ser que ele me escreva", balbuciou e chorou. No princípio era um advérbio. Tudo. E no fim também. Nada.
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