Não podia haver barulho. Cada turma tinha uma vigilante que pernoitava no colégio e ficava na sala de estudo com o grupo que vigiava. Controlo constante e ninguém podia sair da norma. Era um colégio para filhas de militares em tempos de ditadura.
Das coisas que todas adorávamos destacava-se o LANCHE!!! Havia chá, pão, manteiga, mel ou compota e, tanto quanto me lembro, era um must! Não sei bem a razão, mas a direção do colégio deve ter decidido que aquela refeição não era saudável. Por isso, um dia chegámos ao refeitório e deparámo-nos com… terrinas cheias de papas e uma concha para nos servir!!! Não podem imaginar o desgosto que tivemos. Usávamos a concha e aquilo caía tipo baba viscosa nos pratos… Um horror!!! Pensámos "Foi hoje. Amanhã teremos chá e pão". Nos dias seguintes as nossas esperanças morreram. Todos os dias havia uma terrina cheia com uma substância pastosa a que chamavam "papas" e nada de chá ou mel…
A revolta começou a surgir em surdina na nossa turma. Em surdina, porque o controlo e a disciplina eram grandes e quem falasse tinha que assumir consequências gravosas. Começámos a articular uma estratégia de revolta. Combinámos uma demonstração de protesto na varanda para onde dava a nossa sala, que ficava por baixo do andar da diretora. Seria na hora do estudo da manhã, quando a vigilante estivesse de folga. Só a nossa turma sabia o que ia acontecer. (Nota informativa: Uma das coisas que se aprende num colégio interno é que ninguém dá com a língua nos dentes e ninguém dá manteiga a ninguém. Parecem-me dois bons princípios, que ainda hoje tento seguir).
No dia combinado, rezámos a oração da manhã, tomámos o pequeno almoço e caminhámos em forma para a nossa sala. Abrimos os livros, fingimos que estudávamos e uns minutos depois abrimos as janelas e saltámos para os claustros gritando algo como "Chá e pão, papas não!" Foi um sururu! As outras turmas abriram as janelas e as vigilantes não conseguiam controlar ninguém. Acabaram por vir tirar-nos da varanda e reenviaram-nos para a sala. Agora pela porta. Ficámos à espera da expulsão. O dia foi decorrendo e chegou a hora do lanche. Ansiosas, pensámos que nos colocariam uma terrina de papas à frente de cada uma, obrigando-nos a engoli-la. Nada disso! Os nossos olhos esbugalharam-se de satisfação. Em cada mesa havia bules de chá, fatias de pão, manteiga e mel…
Foi o meu início "revolucionário". Percebi que se queremos mudar as coisas, temos de nos envolver e arriscar. Podemos perder ou ganhar, mas fizemos alguma coisa. Anos mais tarde, na faculdade de letras, tive de enfrentar polícias armados e cães polícias, carros de água e outra parafernália agressiva. Tinha um medo horrível de ir para a faculdade, mas nunca faltei, apesar de nem perceber bem o que se estava lá a passar. Via estudantes a serem perseguidos pela polícia pela alameda abaixo. Percebi que havia bufos que denunciavam estudantes. Não gostei e posicionei-me logo do lado dos meus colegas.
Maria Teresa Horta tem um poema onde pergunta "Que País constróis diariamente?" Eu tento construir os princípios de abril diariamente, no meu metro quadrado. 25 de abril sempre!